Papa Francisco reabilita padre perseguido pela ditadura da Nicarágua

O velho sábio que habitava esta Folha costumava repetir que vivera o suficiente para ver tudo acontecer e o seu contrário também. Se conhecesse essa frase, o padre nicaraguense Ernesto Cardenal a repetiria, com uma modificação essencial: não só viu tudo acontecer e o contrário também, mas viveu duas mortes e sobreviveu a ambas.

A primeira morte foi decretada em 1984 pelo então papa João Paulo 2º, que o afastou da igreja, após um episódio de brutal humilhação pública no ano anterior.

Cardenal, um expoente da Teologia da Libertação, mergulhara fundo na guerra que a Frente Sandinista de Libertação Nacional movia contra a ditadura da dinastia Somoza. Quando a revolução triunfou, Cardenal foi nomeado ministro da Cultura.

Foi nessa condição que estava no aeroporto para receber o papa, em visita à Nicarágua, em março de 1983. Juan Arias, notável jornalista, hoje correspondente de El País no Brasil, cobria a visita e recordou o episódio na edição deste domingo (17) do jornal espanhol: “Quando o papa se aproximou, Cardenal ajoelhou-se e tomou sua mão para beijá-la. João Paulo 2º tirou a mão e, quando o sacerdote lhe pediu a bênção, o papa, apontando um ameaçador dedo indicador da mão direita, lhe disse que antes teria que reconciliar-se com a igreja".

A igreja jamais permitiu a reconciliação até porque o longo papado de João Paulo 2º foi dedicado a eliminar a Teologia da Libertação. Conseguiu.

Cardenal, depõe Arias, foi desterrado, mas jamais saiu da igreja: “Sempre esteve dentro, como cristão e como sacerdote".

Foi preciso o cardeal argentino Jorge Bergoglio assumir, como papa Francisco, para que a igreja ressuscitasse Cardenal. Há dez dias, o bispo auxiliar de Manágua, Silvio José Baez, foi ao hospital em que Cardenal, 94, tenta recuperar-se de grave infecção renal, ajoelhou-se ao pé da cama e disse: “Peço sua bênção como sacerdote da igreja católica".

Todo um gesto para confirmar que o papa levantara a morte sacerdotal imposta 35 anos antes.

Que tenha sido Baez o agente da notícia é revelador da outra morte que tentaram impor a Cardenal, esta pelos usurpadores da revolução libertária pela qual lutara: Baez é, talvez, a mais importante voz a denunciar a ditadura para a qual resvalou o sandinismo sob o casal Daniel Ortega e Rosário Murillo.

Desde que Ortega voltou ao poder em 2007, passou a perseguir Cardenal, usando, entre outros meios, a mão pesada do sistema judicial, sob controle do casal Daniel/Rosário: em fevereiro de 2017, notificou

Cardenal de que deveria pagar uma multa de US$ 800 mil (R$ 2,9 milhões), por supostos danos e prejuízos em disputa relacionada à posse de terrenos em Solentiname. Foi lá que Cardenal fundou sua comunidade de pescadores, camponeses e artistas primitivistas.

Cardenal denunciou a multa como o que de fato é: perseguição política “por parte do governo de Daniel Ortega e de sua mulher, que são donos de todo o país, até da justiça, da polícia e do exército. Mais não posso dizer, porque esta é uma ditadura", afirmou em entrevista a El País.

Esta segunda morte, agora política e não eclesial, talvez seja compensada pelo retorno à igreja, cuja cúpula o afastou porque o sacerdote acreditava que, “entre cristianismo e revolução, não há contradição”, como cantava a multidão que recebeu João Paulo 2º em Manágua faz 36 anos.

Pena que, ao voltar à igreja, Cardenal não possa também voltar à revolução porque esta foi corrompida e violentada.

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