Guerra que corta Ucrânia há quatro anos se mistura à vida de moradores

As ruas da pequena Zaitseve estão sempre vazias, mesmo sob o sol forte do começo de um verão que promete ser especialmente quente no leste da Ucrânia. O verde do mato agora alto toma conta de tudo. As cerejeiras estão carregadas e a passarinhada faz a festa com as frutas que jamais serão colhidas.

Volta e meia passa alguém pela rua principal desse vilarejo com jeitão de cidade fantasma, sempre apressado.

Aqui, quando alguém sai de casa, não para. Quatro anos de guerra ensinaram às pouco mais de 1.500 pessoas que ficaram em Zaitseve que, quanto menor o tempo ao ar livre, menor a chance de perder a vida repentinamente.

Dividida ao meio pelas trincheiras das forças rebeldes e do Exército ucraniano, Zaitseve é o exemplo de uma tragédia que parece longe do fim.

Ao longo dos quase 500 km da linha imaginária que agora divide a Ucrânia das recém-criadas repúblicas de Donetsk e Lugansk, vivem aproximadamente 600 mil pessoas em um raio de até 10 quilômetros das linhas de combate, de acordo com estimativas das Nações Unidas.

Destas, mais de 100 mil são crianças. Desde 2014, mais de 2.500 civis foram mortos no conflito. A maioria estava em cidades assim. Não é preciso gastar muito tempo por aqui para entender o porquê.

O cantar dos pássaros é constantemente cortado pelo som de metralhadoras, morteiros e das granadas. As trincheiras estão a poucas centenas de metros do centro da cidadezinha e, não raro, projéteis aterrissam nas ruas e nas casas dos moradores.

"Isso que você está ouvindo não é nada, as coisas ficam ruins à noite, quando os combates se tornam mais intensos, e a artilharia, mais comum", diz Irina Dikun, 35, a prefeita apontada para Zaitseve pelo governo da República Popular de Donetsk, país criado por separatistas apoiados pela Rússia no leste da Ucrânia.

Em seu gabinete, ornado com a bandeira da nova nação e uma foto do presidente russo, Vladimir Putin, o som dos tiros se intensifica. Irina se lembra que em nenhum momento há segurança.

"Não deixamos mais as 200 crianças que sobraram aqui brincar juntas na rua, no pátio da escola, no campo de futebol. Não queremos perder todos de uma vez". Nos últimos três anos, 80 civis morreram neste lado de Zaitseve, o controlado pelas forças rebeldes.

Irina Simonova, xará da prefeita que vive a centenas de metros da praça principal, só aceita sair de casa quando as metralhadoras cessam. "Enquanto estiverem só atirando, estamos seguros aqui, mas se começarem os bombardeios teremos que parar", diz.

Desconfiada, reluta em contar sua história, mas parece precisar narrar cada detalhe de sua tragédia. Faz pouco mais de um mês que seu marido morreu atingido por um morteiro enquanto aproveitava o sol da primavera na chácara da família. O projétil caiu a seu lado e o matou na hora.

O pai de sua única filha estava com a amante. "Eu sabia, mas agora todos ficaram sabendo que ele se encontrava com ela", diz, indagando pela quarta vez se sua história seria publicada na Ucrânia ou apenas no exterior.

"Ela não tinha ninguém e meu marido trabalhava no Ministério do Interior, me pediram para que eu os enterrasse juntos", conta. "Foi meu último ato de amor. Eles estão juntos agora, e eu estou só, com minha mãe, no meio desta guerra estúpida."

Irina tem pouco menos de 40 anos e quer recomeçar. Torce para que o conflito que ela diz não entender termine o mais breve possível.

Nicolai, perto dos 80, está certo de que não passará mais uma noite sequer sem ouvir metralhadoras e morteiros.

"Nasci na guerra, quando os alemães estavam aqui, e vou morrer na guerra, já não me resta dúvida disso" diz ele, voz ainda forte em um corpo frágil a se escorar em tudo.

Com a mulher, Tamara, vive em uma pequena casa no extremo oeste de Zaitseve, já sob controle dos soldados do Exército ucraniano. A casa está a menos de um quilômetro da de Irina. Entre eles, há soldados ucranianos e rebeldes.

Veterano, perdeu o olho esquerdo quando um morteiro explodiu ao seu lado em Kandahar, quando lutava pela União Soviética na guerra do Afeganistão. O direito começou a ficar embaçado há uns dois anos. Hoje só vê vultos.

"Mas tenho memória boa, consigo caminhar pelas ruas e pela minha casa todinha", diz, mostrando onde dorme nas noites calmas com a mulher.

Quando os disparos recomeçam, Nicolai e Tamara se refugiam na garagem. Sem janelas no recinto, acreditam estar mais seguros ali.

Tamara enxerga, mas anda mal. Depende de Nicolai para tudo. "Teremos uma morte ruim, ninguém vem nos visitar, nem os soldados. Vamos morrer e vão demorar a encontrar nossos corpos", diz ela.

O filho mais velho dos dois era militar. Foi um dos primeiros a chegar em Tchernobil após o devastador acidente nuclear de 1985. Morreu meses depois pelo efeito da radiação. Está enterrado no outro lado das linhas de combate.

Lá, também, vive a filha de Nicolai e Tamara. "Queremos que ela nos tire daqui, mas não conseguimos nos falar porque as comunicações foram cortadas e ela não pode chegar", conta o pai, repetindo que os soldados ucranianos levaram seu pequeno gerador e sua bomba de água. Antes de se despedir, pede para tentar, uma vez mais, ligar para sua filha. Ninguém nunca atendeu.

Nas trincheiras ucranianas, a menos de 500 metros de sua casa, um major diz saber quem são os dois idosos que vivem com três cachorros na rua logo abaixo. E dá um conselho: "Não se importe com eles, são apenas dois velhos separatistas que queriam estar na Rússia, merecem o que têm".

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