Nanette: entre proteger e preparar

Ao assistir “Nanette” (Netflix), escrito e estrelado por Hannah Gadsby, nos sentimos como um boneco de pano sendo jogado de um lado para outro. Durante aproximadamente uma hora vivemos numa montanha-russa, conduzidos de tal forma que já não sabemos quando acaba o drama ou começa a comédia, e vice-versa. 

Momentos de diversão são seguidos de inesperada tensão e mal-estar, que podem dar lugar a lágrimas ou risos, ou ambos. A artista nos revela com quantos dramas se faz uma comédia, escancara os bastidores da estrutura cômica e dramática, sem que com isso deixemos de embarcar em ambas. 

Ponto alto: o arrependimento confesso de sua mãe por tê-la criado como heterossexual, quando Hannah, desde pequena, demonstrava sua homossexualidade. Para além dos anos de solidão, vergonha, culpa e humilhação que pesam sobre a atitude da mãe e que marcaram Hannah para sempre, a artista é capaz de reconhecer no gesto da mãe a tentativa frustrada de protegê-la do pior.

Moradora de Smithton, cidadezinha da Tasmânia cuja proibição da homossexualidade se estendeu até 1997 e, diante da impossibilidade de enfrentar os preconceitos dos outros e os próprios, a mãe de Hannah se presta a coibir o comportamento da filha.

Mãe insensível e preconceituosa ou mãe preparando a filha para o seu tempo e sua realidade? Escolha que me remete às mães que levam suas filhas para a circuncisão feminina em alguns países de continente africano. Seriam mães más? Cabe contextualizar. 

A manutenção ou não das tradições é uma das diferenças centrais entre culturas ocidentais e culturas tradicionais, ditas “primitivas”. Na nossa cultura somos ávidos pelo novo, pela transformação e desvalorizamos o que é antigo. Para nós, educar os filhos para o aqui e agora cria um paradoxo, pois os costumes que ensinamos são anacrônicos de saída.

Nos 40 anos da vida de Hannah, sua mãe viu a filha passar de doente/criminosa, segundo a perspectiva vigente em Smithton, para estrela mundialmente reconhecida. Houve dois deslocamentos nessa experiência, um no tempo e outro no espaço. No tempo, grandes mudanças ocorreram em quatro décadas. No espaço, sair de um lugar como Smithton pode ser a diferença entre viver na Idade Média ou na pós-modernidade. 

Já no caso da circuncisão feminina, essa só passou a ser combatida à medida em que o contato com outras culturas abalou crenças ancestrais. Em nossa cultura, por outro lado, a mudança de costumes é um valor atrelado à ideia do consumo e à desvalorização da tradição, mas também atrelada aos direitos civis em uma democracia sempre no horizonte —embora nunca realmente alcançada.

Daí resulta a paradoxal função dos pais: proteger para o hoje e preparar para o amanhã. Diferenciar a impermanência de algumas convenções da necessária permanência de alguns valores. Amor, respeito, justiça, responsabilização, solidariedade nunca poderiam “cair de moda”, pois forjam as condições do laço social em qualquer grupamento humano. Mas, quanto aos costumes, é fundamental que ensinemos os filhos sobre hoje atentos ao porvir. 

Ao escutarmos nossas crianças e jovens, é mais provável que eles nos tragam o novo mundo ao invés de recebê-lo de nós. Hannah estava sozinha em sua incursão pelo futuro, no qual alguém como ela pode ser aceita e admirada, independentemente de sua orientação sexual. 

Coube a ela, pelo caminho mais duro, preparar a mãe para uma nova realidade, revelando que a pretensa proteção dos filhos, que muitos pais usam como argumento, e a covardia diante do novo, muito frequentemente, são os grandes causadores de sofrimento.

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