Gaúcha negra lidera há dez anos casa no Acampamento Farroupilha

Fernanda Canofre

PORTO ALEGRE Quando aprendeu sobre a Guerra de Farrapos (1835-1845) na escola, Elaine Rodrigues Espíndola, 71, não ouviu falar dos Lanceiros Negros. Era a avó quem contava sobre a história que o Rio Grande do Sul esqueceu. O pelotão de negros escravizados foi à luta contra o Império, com a promessa de liberdade, mas acabou traído e chacinado numa emboscada preparada em acordo entre os dois lados da guerra, no Massacre de Porongos.

A avó dizia que Elaine tinha que aprender a ler e a escrever para passar essa e outras histórias adiante. Ela, que não sabia, usava o dedo para assinar. A mãe de Elaine mal riscava o próprio nome. A trisavó e a bisavó tinham um ditado: a felicidade é uma botina velha, confortável para os pés que tinham de caminhar, e um jornal sem letras, só de figuras, onde elas pudessem entender as notícias.

Nascida em Porto Alegre, Elaine, a quinta geração, virou professora e há dez anos é a patroa do único piquete –espécie de casa tradicional– que resgata a história dos negros gaúchos no Acampamento Farroupilha, erguido todos os anos em Porto Alegre, na época em que o estado celebra a revolta. A Guerra de Farrapos é relembrada todos os anos neste 20 de setembro.

Elaine, 71, há dez anos é patroa do piquete que resgata a história dos negros gaúchos no Acampamento Farroupilha, em Porto Alegre. Crédito: Sandra Veroneze / MTG

Para celebrar a data, cerca de 353 piquetes recebem uma média de um milhão de visitantes, acampados durante duas semanas no Parque Harmonia, na região do Centro Histórico. A Revolta é relembrada todos os anos neste dia de setembro, o mesmo que em 1835 viu as tropas lideradas por Bento Gonçalves tomarem Porto Alegre. Os rebeldes reivindicavam melhores condições para comercialização da carne produzida no estado.

“[Os Lanceiros] estavam numa guerra que não era deles. Se isso não foi dito, não foi dito pelo vencedor, mas quem perdeu conseguiu fazer com que essa história chegasse aqui”, diz Elaine. “Quem do próprio Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) nunca recebeu uma benzedura, nunca foi apresentado à lua, nunca teve uma dor de cabeça e a rezadeira resolveu?”.

Ligado à associação de moradores da Cidade Baixa e arredores, região onde historicamente vivia a população negra em Porto Alegre, “O Mocambo” foi uma ideia do marido dela, Claudio. Nascido em Pelotas, no sul do estado, ele cresceu com a cultura do campo, mas lembrando o passado dos ancestrais escravizados nas fazendas que produziam charque. Quando faleceu, Elaine o substituiu na patronagem para seguir o sonho dele.

A decoração, diferente dos piquetes vizinhos, é uma ode à cultura africana que aprenderam com seus ancestrais. As paredes são decoradas com chás, estátua de São Jorge, dentes de alho, referências à tradição alimentar e aos costumes.

A Guerra de Farrapos foi uma das tantas revoltas que aconteceram no país no século 19. Historiador da Universidade de Passo Fundo e um dos maiores especialistas em história do estado e da escravidão gaúcha, Mário Maestri afirma que ela não teve “nada de excepcional”, foi conservadora e esteve sob controle da elite durante todo o tempo.

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Muitos senhores enviavam os escravos para lutar, para manter seus filhos em casa. A promessa era liberdade ao fim da guerra, o que não aconteceu. Aqueles que não morreram na emboscada de Porongos, nem escaparam para quilombos e para o Uruguai durante os 10 anos de conflito, foram enviados ao Rio de Janeiro, onde seguiram escravizados até a Lei Áurea, 43 anos depois.

“[Essa questão] vai contra a visão do mito fundador do estado, de uma produção sem trabalho [pesado], pastoril, sem luta de classes, onde o patrão trabalhava junto aos empregados. Nisso, o negro tem que desaparecer, o cativo campeiro tem que desaparecer, para dizer que trabalho escravo só existia nas charqueadas e, um pouco, nas cidades”, diz Maestri.

No último fim de semana, a relação histórica do estado com o período da escravidão virou centro de polêmica. Um dos piquetes do Acampamento recriou uma senzala, com manequins negros acorrentados ao tronco. A representação, que não tinha autorização do MTG, foi criticada por representantes de vários movimentos.

A reunião para resolver a questão aconteceu dentro do Mocambo de Elaine. Para o presidente do MTG, Nairo Callegaro, o episódio deixou de lição que o movimento tradicionalista precisa aprender a lidar melhor com o passado dos negros gaúchos. A ideia agora é criar um departamento de pesquisas que ajude a contextualizar histórias esquecidas do estado.

“Quando terminou a guerra teve acordo, o território foi reintegrado ao Império e voltou a seguir as leis deles. A escravidão imperava, a promessa de liberdade vinha dessa República rio-grandense que durou quase 10 anos, onde os negros seriam livres, mas que, no final, não logrou êxito”, afirma ele. “[A reunião] nos abriu uma porta sobre como tratar dessas questões e como os negros enxergam a própria História. Essa questão é muito palpitante na sociedade brasileira como um todo, temos que perder o receio de tratar disso”. 

Em 2004, quando chegaram ao local, Elaine lembra de ter causado um estranhamento aos frequentadores de sempre do acampamento. “Mas, assim como o MTG não quer perder raízes, nós também não queremos perder as nossas. Eu sou afro-gaúcha, uso essa pele, desde que eu nasci, 24 horas por dia”.

 

 

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