Existência interrompida

Não conhecia o jornalista Ricardo Boechat pessoalmente. Mas me peguei numa tristeza, talvez um pouco além do que me cabia. Várias pessoas relataram o mesmo. Pesar, vazio, apatia. O dia rendeu pouco, mal consegui trabalhar, me senti paralisada, como se tivesse perdido alguém muito próximo.

E agora, quase 24 horas depois, com um pouco de vergonha, devo admitir que um tanto da tristeza que pesou nos meus ombros foi o medo de não voltar para casa. Medo de acordar, tocar a vida como sempre e ter o curso da história interrompido, como aconteceu com o jornalista, que saiu para trabalhar, planejava almoçar em casa com a família e não voltou. Assim, sem mais nem menos. 

 

Ontem, assim como Boechat, muitos de nós estavam na rua. No trabalho, no trânsito, no médico, no bandejão da firma, no restaurante bacanudo, na academia, pagando contas, atravessando a rua, compartilhando memes, lendo notícias. Quase todos nós tomamos como garantia que no final do dia, ou em algum momento, voltaremos para casa. Nem passa na cabeça da maioria de nós que ao virar a chave da porta, talvez aquele gesto, tão prosaico, seja feito pela última vez.

E, ontem, depois de girar a maçaneta e me descobrir segura no meu mundinho particular, olhei em volta para a vida que eu tinha deixado quando saí pela manhã e talvez não voltasse a ver nunca mais. Muita coisa me pareceu sem sentido. Aquelas, por exemplo, que estão esperando o momento ideal para que aconteçam. Porque aguardamos a hora que parece ser certa, porque temos confiança de que não nos falta tempo.

Três caixas de cerveja, compradas em dezembro, à espera do melhor dia para chamar os amigos. Roupas novas, reservadas para ocasiões especiais. Uma panela novinha e cara dentro do armário, talvez no aguardo da visita da rainha da Inglaterra para que seja colocada no fogo. Livros e mais livros que guardo para as férias, porque me parecem leituras merecedoras de momentos notáveis. Tenho coleções de bloquinhos lindos que compro ou ganho, mas acabo sempre escrevendo em caderninhos xexelentos. Como se a lista do supermercado, com os itens que alimentam a vida diariamente, fosse menos importante. 

Mas talvez amanhã ou mesmo hoje à noite eu nunca mais volte para os livros, para a minha panela linda, minhas roupas que aguardam ocasiões especiais, que talvez nunca aconteçam antes que chegue o dia em que eu não volte para casa.

A gente fala “viva o hoje”, “a vida é agora”, mas continua esperando o fim de semana, as férias, as festas de fim de ano, o feriado, para ser mais feliz. Vivemos uma rotina de segunda à sexta, evitamos excessos, obedecemos a horários, usamos roupas sem graça. Como se a felicidade fosse feita apenas de grandes acontecimentos, como se tivéssemos que arrumar a casa com flores, vestir a melhor roupa para que fique claro para nós mesmos que aquele é um momento raro.

E​, agora, esse chacoalhão por causa da morte inesperada de alguém que a maioria de nós não conhece na intimidade, nos traz a lembrança de como nossa existência é frágil, de como somos efêmeros, de como precisamos lembrar de que a porta da vida talvez esteja se fechando atrás de nós pela última vez. Não porque precisamos pensar na morte o tempo todo, mas para que não esqueçamos de como queremos viver nossas vidas todos os dias.

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