Eca, que nojo!

A foto fez sucesso nas redes sociais no dia 31 de março, aniversário do golpe de Estado de 1964, que inaugurou uma ditadura de duas décadas no Brasil (o dia preciso é 1º de abril, mas isso não vem ao caso agora). Mostra uma jovem ex-candidata derrotada à Assembleia Legislativa de São Paulo agredindo uma mulher com um jato de spray de pimenta nos olhos.

Contexto: a borrifadora estava na avenida Paulista para, atendendo à convocação do presidente da República democraticamente eleito, comemorar uma data funesta para a democracia brasileira. A outra pertencia ao grupo dos que lá estavam para boicotar a festa da direita bolsonarista.

O que importa aqui é menos o contexto do que a imagem em si. As duas personagens ficarão sem nome porque não há heroísmo em nenhum dos lados. Trata-se de uma cena violenta mas, convenhamos, até banal nas democracias, aqueles regimes em que as pessoas podem se manifestar politicamente. O que talvez vá além da banalidade é a cara de nojinho da moça da pimenta.

Como observou alguém no Twitter, sua expressão facial e corporal é a de quem, diante de uma barata encontrada na cozinha e sem coragem para enfrentá-la com o chinelo, descarrega-lhe em cima meia lata de inseticida.

Não poderia haver ilustração melhor para uma reportagem que li outro dia na revista The Atlantic. O título resume tudo: "Liberais e conservadores reagem de forma totalmente diferente a imagens repulsivas". (Liberais e conservadores são termos que devem ser entendidos aqui no sentido americano, grosseiramente equivalentes à nossa divisão esquerda-direita.)

O texto fala de uma experiência conduzida pelo neurocientista Read Montague, da universidade Virginia Tech, por sugestão de um grupo de cientistas políticos. Estes desejavam testar a hipótese de que, além de fatores conhecidos como educação e posição socioeconômica, haveria um componente bioquímico a influenciar nossas posturas ideológicas.

Cético a princípio, Montague acabou topando monitorar por ressonância magnética a atividade cerebral de 83 voluntários enquanto lhes eram apresentadas imagens neutras ou com forte carga emocional --destas, algumas agradáveis e outras revoltantes, nojentas. Em seguida, cada um preencheu um questionário sobre temas políticos e sociais.

O cruzamento dos dois conjuntos de dados, exames de imagem e questionários, impressionou o neurocientista. "Meu queixo caiu", declarou à revista. Os cérebros de gente de direita reagiam de forma muito mais forte às imagens repugnantes. A diferença era tão marcante que os scans permitiam prever posição ideológica com 95% de acerto.

O modo de interpretar esses dados é tema aberto, mas uma hipótese central se impõe. Nossa resposta cerebral de repulsa diante de animais asquerosos e cenas de imundície, traço evolutivo que ajudou a espécie a sobreviver, poderia nos levar, se muito aguçada, a tratar diversos tipos de diferença social, racial e comportamental como ameaças tão imediatas quanto um ninho de ratos no porão.

Não ponho a mão no fogo pelo achado de Montague. Se me parece óbvio que as ciências biológicas e as ciências humanas têm um profícuo diálogo pela frente, o péssimo uso que se fez desse cruzamento há menos de cem anos recomenda a manutenção de um pé atrás: naturalizar o que é histórico também é uma ideia nojenta. Mas que a moça do spray parece dar razão ao neurocientista, parece.

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