Ditadores africanos não vão resistir à mobilização jovem, diz pesquisadora
Quando trabalhou na ONU com proteção a crianças em conflitos armados, entre 1999 e 2002, a anglonigeriana ‘Funmi Olonisakin — com apóstrofe no início do nome mesmo— ficou “chocada” com uma constatação: faltavam africanos, e mais ainda africanas, discutindo as questões relacionadas à África.
Nascida em Londres em uma família nigeriana, ela voltou para a universidade na qual havia feito mestrado, o prestigiado King’s College, e criou em 2006 um centro para formar novas gerações de líderes com potencial para transformar o continente.
Treze anos depois, o Centro de Liderança Africana formou 120 homens e mulheres, e a meta é chegar a 500 em 25 anos.
Especialista em segurança e desenvolvimento, Olonisakin foi a primeira professora negra e africana da instituição e, em 2017, tornou-se vice-presidente da universidade.
Ela foi entrevistada pela Folha em sua passagem por São Paulo para firmar parcerias com a USP e participar de um evento sobre empoderamento feminino no Instituto de Estudos sobre a Paz e Resolução de Conflitos da universidade.
Que dificuldades as mulheres enfrentam para ocupar cargos de destaque na África?
Existe, no continente, uma mentalidade machista que reverencia especialmente homens mais velhos. Estou generalizando, é claro, são 54 países africanos, mas no plano institucional e de mentalidade, domina a liderança masculina.
É curioso porque fora da política formal e das instituições militares, por exemplo nas áreas de finanças e negócios, você vê mulheres brilhantes. Na política isso está mudando, mas as mulheres africanas ainda não são bem-sucedidas como poderiam ser.
Nesse continente de 54 países e mais de 1 bilhão de pessoas, há desafios comuns em relação à segurança?
Se há uma coisa que une a África é a questão da insegurança. Houve a época das guerras de independência, a das guerras por procuração, a das guerras civis.
Hoje, o que vemos são presidentes autoritários, que governaram seus países por décadas, começando a deixar o poder. E muito disso é pela mobilização dos jovens. A idade média da população na África é de 19 anos. A forma como a juventude se comunica, via redes sociais, ajuda a demandar liberdade. Há uma nova era africana com essas revoluções, e os ditadores não vão resistir por muito tempo.
Olhe para a Argélia, a população tirou o presidente [Abdelaziz] Bouteflika [que renunciou após 20 anos no poder]. Vimos isso em Burkina Faso [que elegeu o primeiro presidente civil em 50 anos], vimos o envolvimento dos jovens nas eleições no Senegal.
Esses movimentos podem até criar conflitos num primeiro momento, mas são um sinal de melhores tempos para a África, na minha opinião.
A derrubada do ditador do Sudão [Omar al-Bashir] na última semana é outro exemplo disso?Sim.
Quando líderes que estão há anos no poder são insensíveis às aspirações da maioria, protestos como esses são necessários. Porém, quando a transição política é capitaneada pelos militares, a mudança real pode ser prejudicada.
Como vai o combate ao terrorismo jihadista na África? Na Nigéria, o Boko Haram foi mesmo derrotado, como disse o presidente?
É como o Estado Islâmico. Podemos até dizer que perdeu território, mas o Estado Islâmico está na mente, e essa ideologia não é derrotada tão facilmente.
Alguns dizem que a motivação é religiosa, mas isso não me convence. Claro que eles usam essa narrativa, mas foram condições sociais na Nigéria que criaram o Boko Haram. A violência extremista é uma resposta extrema a desigualdades, e não vamos erradicá-la sem mexer nisso. Se os jovens sentem que não importam, ficam vulneráveis.
Por que você diz que as divisões entre etnias, assim como a religião, não explicam a maioria dos conflitos africanos?
A etnicidade é manipulada pelos governantes quando é conveniente. Como podemos ter líderes de vários grupos étnicos que sentam juntos no Parlamento, mas, na base, ter conflito entre etnias? Se um governo favorece só um grupo étnico, o conflito é por causa da etnia ou da exclusão?
Mas mesmo isso está mudando aos olhos da nova geração: jovens que foram à escola juntos fazem várias coisas juntos. Esses conflitos vão se tornar menos frequentes.
A migração de africanos para a Europa tem ganhado espaço na mídia. Mas a maioria dos migrantes fica dentro do continente, certo?
A migração para países próximos sempre foi o movimento principal. Só a Guiné recebeu mais de 10% de sua população em refugiados da Libéria e Serra Leoa, por exemplo. Mas o que chama a atenção? Quando africanos tentam entrar na Europa.
E já que os países europeus veem essa migração como ameaça, enviam recursos para governos africanos segurarem seus cidadãos. Mas isso agrava o problema, pois esses governos não usarão os recursos para melhorar a vida da população. Muitos recursos estão sendo gastos para reforçar os mesmos governos.
Por que você quis criar um centro para formar líderes africanos?
Trabalhei na ONU em um momento de várias guerras civis na África. Esperava ver muitos africanos buscando soluções para os problemas em seus países, mas percebi que a participação de africanos, especialmente jovens ou mulheres, era muito limitada. Isso me deixou chocada. Voltei à universidade com a ideia de formar jovens africanos em segurança e manutenção da paz. Não achamos que liderança vem de um indivíduo poderoso que sabe tudo, mas da combinação da energia de todos.
Como é ser uma mulher africana em um cargo de destaque na Europa?
Eu me pressiono muito, porque só me considerarei bem-sucedida se, ao deixar o cargo, tivermos mais mulheres professoras, mais africanas professoras. Mas vejo mudanças. Hoje temos mais alunas negras vindo para o King’s porque veem minha fotografia e a de outras mulheres na galeria de docentes. Elas sabem que lá encontrarão pessoas que se parecem com elas.
‘Funmi Olonisakin, 54
Vice-presidente do King’s College, é professora de segurança e desenvolvimento e fundou o Centro de Liderança Africana. Incluída entre os dez negros mais influentes do Reino Unido na Powerlist 2019, foi nomeada em 2015 para a equipe de revisão do projeto de construção da paz da ONU.