Comediante favorito à presidência da Ucrânia propõe 'ação política apolítica'

A vitória prevista de Volodimir Zelenski no segundo turno das eleições presidenciais na Ucrânia, em 21 de abril, faz parte de uma maré global que vem conduzindo ao poder líderes populistas com pouca ou nenhuma experiência política. Zelenski vem evitando fazer promessas eleitorais, mas a imagem de si mesmo que burilou e apresentou aos eleitores ucranianos é de alguém ansioso para combater a corrupção e genuinamente preocupado em encontrar maneiras de elevar o padrão de vida da população comum. Tanto assim que sua persona pública passou a ser praticamente identificada com essa luta e essa preocupação.

O caso de Zelenski é singular entre um grupo de líderes populistas que hoje abrange Donald Trump nos EUA, Jair Bolsonaro no Brasil e Viktor Orbán na Hungria, para citar apenas alguns poucos. Talvez fosse justo compará-lo com Beppe Grillo, o comediante que co-fundou o Movimento Cinco Estrelas na Itália. Como Grillo, Zelenski é um ator cômico, e, também como Grillo, não é proponente do populismo de direita, se bem que esteja longe de se identificar com a esquerda.

Se ele é alguma coisa, é um centrista que quer encontrar terreno comum entre o Oeste de seu país e o Leste insubmisso, ou entre o pequeno e médio empresariado e os beneficiários pobres dos programas sociais insuficientemente financiados. Mesmo assim, a comparação tem limites.

Quando a política é tida como sinônimo de “negócios sujos”, as personalidades públicas não envolvidas em suas manobras são vistas como “limpas”. Zelenski, por sua parte, fez algo ímpar para reforçar essa percepção muito antes de anunciar sua candidatura: estrelou por três temporadas consecutivas uma série cômica de TV ucraniana, “Servo do Povo”, fazendo o papel do presidente de posição independente e que combate a corrupção.

A primeira temporada começou no final de 2015 com um professor de história no ensino secundário, Vasili Goloborodko (Volodimir Zelenski) que é filmado secretamente por um de seus alunos fazendo um discurso contra a corrupção, recheado de palavrões, para um colega. Previsivelmente, o vídeo viraliza no YouTube. Comentaristas na web e seus próprios alunos convencem o professor a candidatar-se à Presidência. Ele o faz a contragosto e acaba vencendo a eleição.

Fast forward para 2019. Em entrevista, Zelenski e sua esposa disseram que os milhares de comentários online sobre a série, incentivando-o a candidatar-se a presidente na vida real, o convenceram a ser candidato. O episódio final da terceira temporada, cheio de promessas de um futuro melhor para o país, foi ao ar em 28 de março passado, apenas três dias antes do primeiro turno da eleição presidencial na vida real. Enquanto “Servo do Povo” inclui muitas figuras reconhecíveis da política ucraniana mostradas de modo caricato, a história política do presente emula a série.

Hoje não é a arte que imita a vida; em vez disso, nenhum esforço é poupado para convencer o público de que, desde que haja força de vontade suficiente, é a vida que vai imitar a arte. O partido de Zelenski foi registrado dois anos após o início da série de televisão e tem o nome da série.

É esse vaivém constante e estranho de feedback entre algo que quer ser TV-realidade e a realidade de fato que constitui a vanguarda da “tecnologia política” do século 21.

Qual é o papel do humor nesse processo? Também ele vem se transformando em ritmo acelerado. Tradicionalmente, o humor político ou proporcionava uma válvula de escape para frustrações que não podiam ser expressas diretamente e resolvidas concretamente ou era um mecanismo de defesa contra os excessos opressores.

Mas no caso de “Servo do Povo”, o que se vê não é mais um mecanismo passivo de defesa, mas um motor do que eu chamaria de “ação política apolítica”. Em lugar de fazer o espectador se distanciar temporariamente da realidade, que pode ser vislumbrada criticamente como o que é graças à distância criada quando rimos de nós mesmos, o humor de Zelenski procura moldar essa mesma realidade sem um átimo de autocrítica.

Na série de televisão vencedora da Presidência, um primeiro-ministro corrupto negocia com o ministro das Finanças qual a parte do orçamento federal que o povo merece receber —10%, 12% ou 15%—, depois de o resto ter sido roubado por funcionários governamentais e órgãos públicos diversos. Esta cena, representada com ironia desdenhosa, garantidamente vai confirmar os piores temores dos espectadores e fazer seu sangue ferver de raiva justificada. A questão é o que vai acontecer a seguir.

Sentir emoções fortemente negativas em relação ao sistema pode suscitar desejos reformistas ou revolucionários. Os ucranianos já têm experiência com levantes de massa, o mais recente dos quais ocorreu há apenas cinco anos.

A série de Zelenski desaconselha essa opção. Ela sugere que “a Maidan” (multidões de manifestantes irados lotando a Maidan Nezalezhnosti, ou praça da Independência) também é incentivada por oligarcas, que utilizam os protestos populares para suas próprias finalidades, para trocar um político fantoche por outro.

A opção remanescente é reformista: ir às urnas para eleger não mais um representante das elites podres, mas uma pessoa simples que possa consertar o sistema roto e curar as feridas do país.

De fato, é essa a premissa da série, incentivando os espectadores a procurar um defensor messiânico do povo. Muito convenientemente, o defensor será o maior adversário do primeiro-ministro fictício, o presidente Goloborodko, ou seja Volodimir Zelenski.

Ostensivamente, a iniciativa reformista é lançada fora de “Servo do Povo”, em um dia de eleição na vida real. Mas o externo também é interno: espectadores-eleitores indignados vão às urnas em grande número para dar seu apoio a um partido chamado O Servo do Povo e votar numa figura que é uma amálgama vaga de Goloborodko e Zelenski.

Vivemos um momento na história em que a política está alcançando a economia. Juntamente com a especulação financeira, outras variedades de capital pós-industrial vêm crescendo graças a estarem gradualmente engolindo todas as áreas da vida situadas fora do âmbito econômico.

A influência política hoje se espalha também para o setor da população que normalmente é apolítico e que, paradoxalmente, continua apolítico, ao mesmo tempo em que faz sem querer o que uma liderança outsider quer que ele faça. O sucesso eleitoral de Zelenski na Ucrânia escreveu um novo capítulo nesse processo em andamento.

Michael Marder é professor pesquisador do Departamento de Filosofia da Universidade do País Basco (UPV-EHU), em Vitoria-Gasteiz Tradução de Clara Allain

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