Além dos pais, professores são súditos no reinado das crianças

"A filhota nasceu chorando e emocionando. Você sabe o que isso quer dizer, né? Que ela tem jeito para atriz dramática, vai ser uma estrela e ganhar o maior prêmio de cinema do mundo? Não, amigo, não quer dizer isso não. Quer dizer que você virou pai.” Na voz de Cid Moreira, o comercial de seguro de vida soa como caricatura do encantamento pelos filhos nos primeiros anos de vida. Se a psicologia já reflete sobre um universo em que as crianças são príncipes e princesas, e os pais, seus súditos, pouco se fala a respeito do poder do reinado infantil sobre outro adulto: o professor.

No próximo dia 8, a polêmica pedagoga sueca Inger Enkvist falará na Escola Superior de Propaganda e Marketing, em São Paulo, sobre a crítica que faz a conceitos da pedagogia moderna, como o do protagonismo dos alunos. A palestra inaugura o Centro de Discussão Educacional, novo “think tank” da universidade para debater a educação no Brasil. Será um contraponto ao Núcleo de Inovação Pedagógica, que a ESPM criou em 2013 para reformar os currículos tendo em vista que os novos universitários foram o centro do processo de aprendizagem na educação básica desde que entraram na escola. Para Enkevist, entretanto, seria já a partir da educação infantil que as crianças deveriam aprender que há regras e que o professor é uma autoridade.

Na visão de Gisela Wajskop, referência na formação de professores no Brasil e na pesquisa sobre a educação infantil, a idealização da primeira infância, período entre o nascimento e os seis anos, é hoje um dos maiores entraves no ambiente escolar. Estaria aí, ela acredita, a base de uma educação para o individualismo, em que os desejos da criança se impõem à vida em sociedade, e o aprendizado é prejudicado.

Socióloga e doutora em educação pela USP, após atuar por dois anos como coordenadora do ensino infantil no Ministério da Educação, deu inicío a uma formação de educadores considerada de vanguarda em 2000, quando fundou o Instituto Singularidades, em São Paulo. Passou mais de uma década no contato diário com jovens que iriam se tornar professores e gestores de escolas. Vendeu a faculdade em 2010, foi ao Canadá pesquisar pedagogia e educação infantil, até decidir colocar as suas convicções à prova em seu próprio projeto para crianças, a Escola do Bairro, inaugurada na Vila Mariana, em São Paulo, em 2017. O sobrado com lago e árvores no quintal será também, a partir de agosto, um centro de estudos para educadores.

É com base nessa experiência que Gisela constata que a idealização da infância, principalmente nos primeiros anos, com uma superproteção das crianças, tem se manifestado “muito fortemente em estudantes de pedagogia e em professores mais jovens”. Ela exemplifica: Quando uma criança se nega a fazer uma atividade, o professor lhe pergunta o que quer fazer então, em vez de criar um ambiente que a estimule a participar daquela proposta pedagógica. Esse discurso romântico da criança livre e feliz, afirma a socióloga, que originalmente serviu para valorizá-la, dando-lhe um lugar social protegido do trabalho e do mundo adulto sexualizado, hoje retorna para se contrapor uma educação que por anos foi disciplinadora e autoritária.

Em oposição a velhos métodos totalitários, confia-se que boas competências, como brincar, criar e imaginar, são presentes naturalmente na infância, independentemente de interações e de fatores históricos, sociais ou culturais. A intervenção do adulto torna-se vilã, porque aos pequenos não se poderia impor regras ou atribuir responsabilidades e aprendizados de um mundo que já existia quando nasceram.

Já não é de hoje que a academia se debruça sobre essa infância romantizada. Há 25 anos, em 1994, Contardo Calligaris escreveu para esta Folha um artigo que começava assim: “Como amamos as crianças! Nenhuma passa perto sem levar uma carícia. Mas por que as amamos tanto?” O psicanalista retoma frequentemente o tema da chamada “tirania infantil”, um fenômeno cuja origem data de dois séculos atrás, quando se elaborou a ideia de infância, de uma separação entre a criança e o adulto.

É do século 18 o conceito do “bom selvagem”, de Rousseau, em que a criança, boa por natureza, é corrompida pela sociedade. A influência do filósofo na formação de professores no Brasil foi tema de uma tese de doutorado da Faculdade de Educação da USP, em que a pesquisadora Priscila Nacarato constatou que as ideias de Rousseau são fortemente presentes nos cursos de pedagogia, embora ele seja estudado de forma truncada, sem ter suas obras lidas, de fato, pelos estudantes.

O protagonismo dos alunos, então, que a princípio seria uma tendência saudável, pode se tornar tortuoso quando não construído de forma gradual e relacionado a práticas de convívio na sociedade. Se não houver esse cuidado, acredita Gisela, “formaremos líderes egoístas e pouco tolerantes”.

Uma leva que acha que todos os dias e por qualquer motivo merece ganhar o Oscar.

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