A ditadura que não houve matou 423 pessoas no Brasil
A ditadura que não houve, segundo o presidente Jair Bolsonaro, torturou 20 mil pessoas e matou ou fez desaparecer pelo menos 423 pessoas. É o que consta do documento definitivo sobre violações aos direitos humanos cometidas no período 1964/85 , o relatório da Comissão Nacional da Verdade.
É claro que os hidrófobos do bolsonarismo e os viúvos/viúvas da ditadura dirão que a CNV foi um complô de comunistas para desmoralizar o regime militar. É típico desse tipo de gente. Afinal, até hoje há quem negue que tenha havido o Holocausto.
O relatório da CNV inclui não apenas depoimentos de vítimas mas também de funcionários da máquina repressiva. Cita, por exemplo, o caso de Amilcar Lobo Moreira da Silva, médico do Exército entre 1970 e 1974, que disse o seguinte ao Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro:
“Atendi, ao longo de quatro penosos anos, inúmeros presos, torturados pelos mais hediondos métodos, tais como: ‘pau de arara’, choques elétricos com corrente contínua, inclusive nos órgãos genitais, tentativas de afogamentos, enforcamentos e fuzilamentos, ‘telefones’ (tapas no pavilhão auricular), socos, pontapés e outras coisas mais, inclusive mortes que praticamente presenciei, em número de cinco".
Devem ser esses os “probleminhas” que Bolsonaro disse enxergar na ditadura que, para ele, não houve.
Outro agente da repressão que, em depoimento à CNV, confirmou a prática de torturas foi o delegado Cláudio Guerra, do Dops do Espírito Santos e que, depois, tornou-se pastor evangélico.
Guerra fazia parte de um dos dois grupos de trabalho secretos do Centro de Informações do Exército, no Espírito Santo. Um, o dele, era de execução; o outro de tortura e interrogatório. Outro dos “probleminhas” da ditadura que não houve?
Das 423 mortes, 180 foram por execução sumária e ilegal ou decorrentes de tortura, perpetradas por agentes a serviço do Estado. Diz o relatório que “essas duas formas de graves violações de direitos humanos ocorreram de maneira sistemática durante os anos da ditadura militar, de 1964 a 1985. Os homicídios eram cometidos pelos órgãos de segurança com uso arbitrário da força em circunstâncias ilegais, mesmo considerado o aparato institucional de exceção criado pelo próprio regime autoritário, iniciado com o golpe de 1964".
Ou, posto de outra forma, havia o “probleminha” do arbítrio institucionalizado e havia o “probleminha” do abuso até do arbítrio institucionalizado.
Os “probleminhas” continuaram mesmo depois de terminada a ditadura que não houve, como demonstra o caso de Carlos Alexandre Azevedo. Filho do jornalista Dermi Azevedo, foi levado em maio de 1975 ao DOPS/SP, junto com a mãe, Darcy Andózia.
Tinha apenas 20 meses, mas mesmo assim foi maltratado e nunca conseguiu se recuperar. Em 2010, depôs à revista IstoÉ: “Para mim, a ditadura não acabou. Até hoje sofro os seus efeitos. Tomo antidepressivo e antipsicótico. Não sou feliz".
Três anos mais tarde, Carlos Alexandre se suicidou, aos 40 anos de idade.
Outro “probleminha": durante a ditadura que não houve, 243 pessoas foram vítimas de desaparecimento forçado, ou seja, mais da metade das 423 mortes apuradas pela CNV.
Ao lado da violência física, houve a violência político-institucional: 4.841 representantes eleitos foram arbitrariamente destituídos do cargo. Só nos dois primeiros anos da ditadura que não houve, 2.000 funcionários públicos foram sumariamente demitidos ou aposentados compulsoriamente.
A imprensa passou a ser censurada, os direitos políticos dos brasileiros foram cassados por meio da eliminação da eleição direta para governadores e presidente.
Se é isso que se quer comemorar a 31 de março, trata-se de um insulto à civilização. Já se é para “relembrar", conforme a nova palavra de ordem, o único que cabe é reconhecer os crimes e pedir perdão.