Tragédia é precisar ver Bolsonaro e Haddad beijarem a Constituição ao vivo

Os movimentos iniciais do segundo turno foram favoráveis a Jair Bolsonaro. Se isso se reverterá em vantagem em sua intenção de voto sobre Fernando Haddad (PT), veremos logo, mas é inescapável ver que o deputado do PSL segue surfando sua própria onda.

Já os dois primeiros dias úteis após quase ter sido tragado pela vaga bolsonarista, o PT mostrou que se mantém fiel ao clichê de Tayllerand sobre os Bourbon: não aprende nada, não esquece nada. Os passos da candidatura Haddad se assemelham a uma tentativa controlada de suicídio.

Controlada porque, obviamente, ir beijar a mão de Lula na cadeia logo após o impacto do primeiro turno agrada a uma certa militância —tanto é assim que Haddad chegou até aqui, o problema é avançar. Negar gestos ao mercado financeiro por assumir que ele já apoia Jair Bolsonaro, sugerindo por exemplo um nome para a Fazenda petista, segue a mesma linha.

Mas é autodestrutivo. Não é preciso ser robô de WhatsApp hospedado em Hong Kong para sacar que o gesto gera a óbvia associação entre PT e PCC, ambos controlados de dentro da prisão. É um óbvio exagero em termos práticos, mas isso é irrelevante.

Assim como é tolo resistir a sorrir para a verdadeira elite do país, o tal do mercado. Isso dificulta sim a atração de algum caco daquele eleitorado amontoado no pé das tabelas de votação, que pudesse estar disposto a apostar na figura mais bovina de Haddad por ojeriza a Bolsonaro.

Talvez o PT já sinta o jogo jogado. A aposta que haverá, para ficar agora num abusado clichê geológico, um tsunami ao estilo #EleNão que contamine toda a sociedade é apenas torcida negacionista da realidade das urnas. Dá até preguiça ter de escrever isso, mas vamos ao óbvio: não se trata de abonar Bolsonaro, apenas de buscar compreender o fenômeno.

Já o deputado, encastelado na Barra da Tijuca, viu uma horda de políticos migrar para a sua órbita recém-criada. Há de tudo: apoiadores fiéis, oportunistas venais e veniais. Na quinta (10), deve haver um ensaio de como essa tropa poderia funcionar de forma suprapartidária sem a promessa de cargos num ministério supostamente prestes a encolher.

Como não haverá almoço para todos, a partilha das funções administrativas de Damasco pelas tribos árabes após a expulsão dos otomanos em 1918, brilhantemente mostrada em “Lawrence da Arábia” (David Lean, 1962), parecerá um trabalho fácil.

Neste momento, pouco importa. Bolsonaro está com a principal mão nesta rodada da partida. Nas próximas, terá bastante a responder, independentemente do efeito eleitoral que as questões terão. Até aqui, só o reforçaram. Na seara econômica, onde só o mercado acredita que o guru Paulo Guedes terá carta branca, é que se encontram nuvens mais densas —embora o tempo pareça exíguo para se transformarem em tempestade.

Enquanto isso, prende-se a respiração pelo temor de confrontos. Se a retórica bolsonarista alimenta um "éthos" sombriamente agressivo entre seus militantes mais exaltados, não esperem cordeiros pintados de vermelho do outro.

Não ajudará o discernimento o fato de que cada carteira batida na rua será tratada histericamente como a chegada do fascismo ou da Venezuela entre nós. Mas que o clima está pesado, isso é inegável e não só no mundinho das redes sociais. Há sinais preocupantes, como a morte de um apoiador de Haddad em Salvador.

Se você duvida, pergunte-se por que tanto Haddad quanto Bolsonaro tiveram de se prostrar no altar da maior rede de TV do país para beijar a cruz do respeito à Constituição. Em qualquer democracia mais decente, isso seria um pré-requisito classificatório, mas as duas campanhas fizeram questão de criar ruídos sobre o tema. Creditar ao gesto algum refrigério é, na verdade, normalizar a tragédia que ele embute.

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