Sem ser bom orador, Juscelino empolgava com promessa de 50 anos em 5

Este é o primeiro texto da série “Minha Eleição”, que todo sábado trará relatos de repórteres sobre a cobertura de eleições presidenciais brasileiras do passado.

 

Juscelino Kubitschek nem ouviu o final do recado que comecei a lhe passar. Em pijama, deitado de costas, ergueu o tronco como faria um boneco de molas. Pernas ainda na cama, sentado quase em ângulo reto, com voz baixa e ríspida mandou seu camareiro ligar para alguém. 

O recado era do chefe de Redação do Diário Carioca, o mais tarde senador Pompeu de Souza, informando Juscelino de nova articulação, detectada na Câmara, para sustar a eleição presidencial. Não ouvi o que Juscelino dizia no telefone. A um rápido olhar seu na minha direção, entendi que o incomodava. Não haveria o que publicar. Saí.

A reação de Juscelino nada tinha de excessiva. Era o reflexo natural na tensão de uma batalha eleitoral que reencenava, em 1955, a expectativa de intervenção armada precedente à Revolução de 1930. 

O país estava exaltado desde o suicídio de Getúlio, um anos antes. A corrente militar que, dizia-se, fora conquistada para a democracia pelo convívio com os americanos na Segunda Guerra seguia o seu líder Carlos Lacerda, como fazia a maior parte da UDN: a pregação golpista contra a aliança PSD-PTB, partidos originários do getulismo, era aberta e sem pausa. 

A candidatura de Juscelino aparecia como um desafio. Aumentado pela parceria com o petebista João Goulart como candidato a vice-presidente, cargo que então recebia votação própria.

Candidato de oposição aos getulistas e adjacências, nem por isso o general Juarez Távora era apoiado por todos os de mesma posição, civis ou militares, divididos pela atração do golpe. 

Integrante das agitações inconformistas que passaram à história como o “tenentismo dos anos 20”, participante destacado da Coluna Prestes, revolucionário de 30 e depois adversário da ditadura de Getúlio, Juarez era figura nacional, respeitado por sua biografia mesmo entre os adversários. Com a candidatura, interrompia um certo ostracismo para devolver vida ao pouco que sobrara do messianismo típico da sua geração militar.

Juscelino, ao contrário, era pouco menos do que desconhecido no país. Vinha de um governo que movimentou Minas, mas sem repercussão que o fizesse conhecido nos demais estados até começarem as tratativas das candidaturas à Presidência. 

Sua notoriedade começou por duas adversidades políticas. O sobrenome arrevesado, com grafia e pronúncia que demoraram a uniformizar-se mesmo na imprensa e no rádio, e as acusações de corrupção no seu governo mineiro, expandidas a partir da Câmara e do Senado pelos políticos udenistas.

Os demais candidatos, entre os quais Adhemar de Barros sobressaía, em nenhum momento fizeram a disputa pela Presidência parecer que tivesse mais pretendentes do que Juarez e Juscelino. A imprensa refletia e alimentava essa redução, interessada apenas no confronto pouco ético que também a dividia.

Reportar campanha presidencial era tão agitado quanto fazê-la. A TV, já no seu quinto ano aqui, continuava primitiva, agarrada ao estúdio. A política pouco chegava até lá, o que, veríamos mais tarde, tinha o seu lado saudável. O rádio, consagrado como instrumento político, precisava que o candidato estivesse na cidade da transmissora para proporcionar-lhe o contato com o eleitorado. Transmissão das “externas” à distância era problemática. 

Campanha mesmo era a da propaganda direta, em visita ou comício no maior número possível de municípios pelo país afora. Eram necessárias sucessivas maratonas aéreas, com pequenos intervalos no Rio, ainda capital. Em cada uma, dias seguidos de ida a dois, três municípios.

Na ida para a campanha de Juarez em cidades gaúchas, o avião fretado pousou em São Paulo para a comitiva receber mais um integrante. Vários de nós descemos, formando-se um grupo à espera ao lado da pista. Jânio Quadros, governador, logo se dirigia a nós, cumprimentando um a um. Na minha vez, fiz uma provocação: disse apenas Janio. Não percebi o que ele ouviu. No avião, sentou-se com um assessor ao lado, mais ou menos no meio da fileira de assentos, e se pôs a ler jornais.

Candidatos levavam convidados, pessoas que lhes davam prestígio ou, na volta, falariam da campanha. Millôr Fernandes e Fernando Sabino eram dois dos quatro ou cinco convidados de Juarez. 

Os três sentávamos no fundo, já com algum tempo de voo, quando começamos a quebrar a monotonia. Um deles foi sentar na frente. Pouco depois, de lá chamou: “Janio!”. Dei um tempo e percorri o corredor, como passeando, até sentar na frente. Mais algum tempo de quietude, o que ficou atrás chamou: “Janio!”.

Fiz de volta o que fizera na ida. Assim foi uma meia dúzia de vezes. Os que perceberam a brincadeira, riam. Outros, sem saber meu nome, inquietavam-se sem entender o que se passava. Até que o assessor de Jânio, um certo Afrânio que não parara de se virar para descobrir quem chamava, foi a mim: “O governador está convidando você a conversar um pouco com ele”.

“Como é seu nome?”, pergunta que não esperou por me sentar. “Mas eu nunca encontrei alguém com esse nome. Nunca. Nunca”. O xará estava aturdido. Quis saber a origem do meu e ouvi minuciosa história do seu. E até do pai que o compusera. 

Desde a primeira cidade do roteiro, Jânio mostrou ser a atração da companhia: sua originalidade já chegara ao país todo. A inflexão meio cantada entre agudos muito agudos e quedas dramáticas do tom, os suspenses criados pelas pausas tão inesperadas quanto longas, retinham a atenção do público. O ator sabia domá-lo.

Na hierarquia dos oradores, Jânio discursava antes de Juarez, o último. Não era discurso decorado, porque o vocabulário variava conforme os ouvintes, mas era o mesmo em todas as cidades. Sempre entregava a Juarez uma praça febril, pronta para empolgar-se com as máscaras de ira do “tenente de cabelos brancos”, como Jânio o chamava no discurso: os desvios do país eram o tema do candidato. E a razão de sua candidatura.

Primeiro integrante de governo, com a Revolução de 30, concentrado na riqueza mineral brasileira, Juarez exaltava-se com o atraso nas pesquisas de jazidas petrolíferas, em particular, e na exploração dos minérios mais valiosos. Via nessas atividades a base para o desenvolvimento. Nem por isso a corrupção, o alto índice de analfabetismo e a política partidária o enfureciam menos. Discursa menos para a conquista de eleitores do que para uma comunhão de indignados.

Conseguir linha telefônica ou telégrafo aberto eram esforços quase sempre inúteis depois dos comícios. Além da precariedade das comunicações, em geral o que havia a transmitir não tinha diferença do já transmitido mais de uma vez. Restavam só as miudezas, engraçadas ou curiosas, que Fernando Sabino usaria a convite do juscelinista, mas pluralista, Diário Carioca. Alguns aproveitamos as discurseiras para fazer o reconhecimento de cada cidade, até a entrada em cena de Jânio e Juarez nos palanques. Mantivemos, porém, a sobriedade inviolada. 

Como convinha à seriedade imperturbável de um candidato que nunca se dirigiu aos jornalistas, não aceitou pedido de entrevista ou conversa, teve pouca presença até nos almoços e jantares oferecidos a cada dia —comia no avião pedaços de frango que, levados em modestos embrulhos, não ofendiam sua úlcera de estômago.

Foi também no Sul, Santa Catarina e Paraná, que acompanhei a campanha de Juscelino, em substituição única ao repórter designado. Já na primeira parada, um incidente. O repórter da Última Hora perdeu o avião no Rio e nos encontrou mais tarde. Veio direto a mim: “Quem é o cara que trata com a gente? Quanto estão dando?”. Não me surpreendi, já o conhecia, e não soube quem lhe indicar. Logo saberia, ouvindo a discussão entre um assessor de Juscelino e o repórter que ameaçava voltar para o Rio. Ao menos manteve a palavra, à falta do que desejava.

Os discursos de Juscelino referiam-se muito pouco à política. Se o faziam, criticavam as ameaças às eleições, sem dar nomes e citar partidos. Juarez lia jornais e livros nos voos, Juscelino lia dossiês sobre o próximo município a visitar, às vezes o estado. Com isso, podia elogiar e incitar iniciativas na economia local, o que mais tarde criou sérios problemas por algumas razões. 

Um ou dois anos depois de comícios em certa região baiana, por exemplo, a produção de cebolas agigantou-se, mas não havia como escoá-la antes de começar a apodrecer. Em outra área, ainda hoje grande produtora de feijão, nos primeiros anos do novo plantio não houve mercado que absorvesse as safras.

A construção da nova capital, ao contrário do já dito e escrito, não foi o centro da campanha. O ingrediente forte do discurso partia do lema eleitoral: “50 anos em 5”. Juscelino empolgava as plateias sem ser bom orador. Carregava no otimismo, com um Brasil repleto de hospitais e de escolas que acabariam com o analfabetismo. Industrializado. Movido pela energia abundante. Todo conectado por estradas. Sem mais secas no Nordeste. Alimentando o mundo. Sem desemprego. Com salários dignos. Aposentadoria justa. O comício exultava: 50 anos em 5.

Ao comício sempre se seguia uma recepção, com almoço ou jantar. Embora raras, houve até recepção com dança, tratando-se de “Juscelino Pé de Valsa”. O candidato, como depois o presidente, subscrevia o apelido com os pés. Às vezes, para constrangimento dos que, já tarde, queriam retirar-se. Ou por outros motivos, como se deu, e virou folclore político, em uma das estâncias hidrominerais de Minas: Juscelino dançou a noite toda com a interessante mulher do prefeito, sem dar vez nem ao marido.

Quando muito, Juarez dava uma passada de cordialidade pela recepção, e ia comer o seu franguinho no quarto de hotel. Mas, exceto na exaltação dos discursos, foi o mesmo em todos os momentos. Calmo, sério, educado nos formalismos. A simpatia sorridente de Juscelino era uma representação que não se exibia sem motivo. Aos repórteres, nem cumprimentava. Sua rispidez constante no trato com auxiliares foi uma surpresa chocante. Ao menos uma vez, com efeito inesperado.

O DC-3 , posto à disposição da campanha por uma das empresas aéreas, era comandado por Alberto Martins Torres, personagem na história mundial da aviação de guerra. Com 35 missões, os pilotos de caça americanos voltavam aos Estados Unidos, para seis meses de recuperação, mas Torres fez 105 missões sucessivas na Segunda Guerra. 

Antes de ir para a Europa, fizera na costa do Rio o único afundamento de submarino alemão pela aviação brasileira. Civil, foi piloto militar voluntário e temporário. Civil outra vez, foi causador de uma cena grotesca na campanha.

Voávamos sobre o pampa gaúcho, quando Juscelino teria olhado para a janela e se assustado com a baixa altitude do avião. De pé, aos berros deu uma ordem para todos ou qualquer um: “Diz a esse piloto maluco que eu mandei subir imediatamente”. Dois ou três correram à cabine para o recado.  Torres ouvira os berros reiterados de Juscelino. Respondeu com tranquilidade aos mensageiros: “Diz ao doutor Juscelino que eu sou o comandante desse avião e sei o que faço”. Ninguém ali daria o recado de volta.

Com sua outra face, Juscelino colheu 35,68% dos votos, contra 30,27% de Juarez, mas foram necessários dois golpes de estado para assegurar-lhe a posse. Hoje suponho que a tensão áspera de Juscelino contribuísse muito para o ambiente desagradável na sua comitiva. As pessoas pareciam apreensivas, aparências de servilismo predominavam, ninguém se mostrava à vontade. Busquei refúgio na companhia dos dois pilotos. Fiz apenas, e a penas, essa etapa da campanha de Juscelino. Logo pude voltar à companhia de Millôr, Fernando Sabino, Max da Costa Santos — ah, sim, e de Juarez.

A eleição de 1955

Data 3 de outubro

Candidatos a presidente
Juscelino Kubitschek 
(PSD, PTB e outros)
36%
Juarez Távora (UDN e outros) 
30%
Adhemar de Barros (PSP)
26%
Plínio Salgado (PRP)
8%

Candidatos a vice-presidente* 
João Goulart (PTB e outros)
44%
Milton Campos 
(UDN e outros)
42%
Danton Coelho (PSP)
14%

Slogan 
“50 anos em 5”

Jingle do vencedor 
“Juscelino Kubitschek é o homem 
vem de Minas das bateias do sertão
Juscelino, Juscelino é o homem
Que além de patriota é nosso irmão”

População 
52 milhões (censo 1950)

PIB 
alta de 8,8%

Inflação 
12%

Desemprego
1,26% (em 1950)

Urbanização 
36%

Músicas 
“Eu e o meu coração” (samba de Inaldo Vilarim e Antônio Botelho)
“Pois é” (samba de Ataulfo Alves)

Escola vencedora do Carnaval do Rio 
Império Serrano (tema: Exaltação a duque de Caxias)

*Votação para presidente e vice ocorria de forma separada
Fontes: IBGE, TSE, PNAD, FGV

Source link

« Previous article Navegação costeira ganha espaço como opção de transporte de carga
Next article » 'Malhação': Maria Alice desiste de ter momento íntimo com Alex e termina namoro