Rir para não chorar

1. Certa vez, em São Paulo, alguém contou uma piada de português ao jantar. Os convidados riram. Eu não ri. Com cara séria e uma indignação talmúdica a latejar nas veias, murmurei: “Não teve graça.”

A sala gelou. A pessoa que contou a piada se desdobrou em desculpas: não queria ofender, foi insensibilidade, ela amava Portugal, o pastel de Belém, o bacalhau na brasa.

Totalmente mortificada, ainda acrescentou que um dos avós era de Trás-os-Montes (pergunta: por que motivo quase todos os brasileiros descendentes de portugueses que eu conheço vêm de Trás-os-Montes? Mas divago.)

Foi então que eu sorri. E acrescentei: “Vocês agora percebem como o mundo ficou paranoico?” Risos e suspiros. Desceu o pano.

Lembrei dessa história quando soube que Apu Nahasapeemapetilon vai desaparecer dos radares. Quem? Apu, leitor, um dos meus personagens favoritos de “Os Simpsons”, aquele imigrante indiano, dono de uma loja de conveniência, com um linguajar que eu sei imitar na perfeição.

Segundo parece, os produtores da série não ficaram indiferentes às acusações de racismo por causa do personagem. E ponderam “matá-lo” nos próximos episódios para não ofender a Índia inteira —ou, pelo menos, dois ou três zelotes americanos que se imaginam representantes da Índia inteira.

Matt Groening, o criador dos “Simpsons”, está desolado. E, em comentário certeiro à loucura vigente, deixou esse pensamento melancólico: o que não era “politicamente incorreto” no início da série passou a ser intolerável 30 anos depois. O que permite questionar: como estaremos daqui a 30 anos? Mais tolerantes? Menos?

Eis a pergunta fundamental. Censurar Apu por ser uma caricatura da imigração indiana não é apenas um grosseiro entendimento da essência do humor. Se a ideia é proibir qualquer manifestação de “insensibilidade”, então a consequência imediata é acabar com qualquer piada para evitar uma ofensa potencial para alguém.

Só o silêncio, como o silêncio constrangedor e gelado do meu jantar paulistano, será tolerável para a sensibilidade das brigadas.

Mas censurar Apu parte também do erro de considerar a nossa época como o pináculo do bom senso e do bom gosto.

Porém, como Matt Groening sugere, discutir o que é “politicamente correto” ou “incorreto” hoje, agora, neste instante, é apenas uma moda passageira que o relativismo da história não autoriza.

Se tudo é contingente, que direito têm os inquisidores para queimarem nas suas fogueiras aquilo de que não gostam?

Os produtores até podem enterrar Apu Nahasapeemapetilon com pompa e circunstância. Mas alguém deveria informá-los que são eles que vão dentro do caixão.

2. Clóvis Rossi, com extrema generosidade, interpela-me na sua coluna. Perante a onda populista que corre o mundo, pergunta o ilustre jornalista: falamos de “democratas”? 

Respondo: falamos, sim, porque o mecanismo de ascensão ao poder não passa pelo clássico golpe de Estado ou por qualquer outra forma ilegítima de captura do governo. 

O problema, porém, é que o voto não encerra a discussão. Não basta que o candidato populista respeite a “democracia”; é preciso que ele respeite a “democracia liberal”, sobretudo depois de eleito.

Por “democracia liberal” não me refiro apenas ao resultado conjuntural de uma eleição. Falo de um conjunto de direitos e liberdades constitucionalmente consagrados (separação de poderes, Judiciário independente, direitos das minorias, liberdade de imprensa etc. etc.) e que estão acima, bem acima, das conveniências do governante.

É por isso que, retomando a dicotomia entre elitismo X populismo, muitos especialistas falam de um confronto entre “liberais não democratas” (elitistas ou internacionalistas que olham para o povo com desprezo) e “democratas iliberais” (populistas que só prestam contas às massas porque acreditam falar em nome delas).

O desafio dos “democratas liberais” é recusar essa dicotomia como perigosa e fantasiosa. E defender, ao mesmo tempo, a soberania popular e a regra da maioria —mas também o constitucionalismo e o princípio liberal de que existem limites que o poder do Estado não pode ultrapassar. 

Não é tarefa fácil.

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