Referência na cozinha nacional, Ricardo Maranhão morre aos 72

“O que difere os homens dos outros seres vivos?”, provocou-me o historiador Ricardo Maranhão, morto nesta sexta-feira (7), aos 72 anos, em decorrência de um câncer. “Ele nunca está satisfeito, sempre cria novas necessidades. Essa é a característica que o diferencia”, o próprio respondeu. “O homem tem o hábito de elaborar formas de alimentos cada vez mais variadas.”

Ainda que Ricardo Maranhão tenha sido um estudioso da história da luta sindical e da energia elétrica no país, a alimentação foi o que o conquistou mais tardia e profundamente. “Um historiador de bom apetite pela boa mesa (aristocrática ou plebeia)”, escreveu o crítico Josimar Melo, com quem dividiu cursos de gastronomia.

Doutor em história pela USP e em sociologia pela Unicamp, foi um dos intelectuais que mais contribuiu para o entendimento da cozinha brasileira, ao lado de célebres como Gilberto Freyre e Luís da Câmara Cascudo.

Fundador do Centro de Pesquisas em Gastronomia Brasileira na Universidade Anhembi Morumbi, tratou a área academicamente, com cientificismo, e deixa um legado de mais de 20 obras publicadas.

“Gente do Mar” (ed. Terceiro Nome) lhe rendeu o prêmio Jabuti em 2015. Na publicação, o historiador registra a pesquisa que o consumiu por mais de um ano, em viagens pelo litoral do Brasil, a observar os modos de vida preservados nas comunidades mais isoladas.

“É capaz que a pesca artesanal desapareça”, dizia ele, diante do massacre da indústria e do turismo predatório.

Sentia urgência, pois, em retratar o cotidiano desses povos, desprovidos de uma classe média intelectualizada preocupada em identificar e conservar tradições.

Maranhão inquietava-se em observar e registrar o trivial. Para ele, a gastronomia não era “alta”. O que valorizava era o ato de comer e seus rituais.

Tinha a habilidade de transitar da antiguidade clássica greco-romana à cozinha espanhola ultramoderna —sempre amparado na história, na observação e análise das relações culturais. Dedicava tempo para discorrer sobre como a alimentação interferiu na consolidação da cidadania.

Era um prazer ouvir Maranhão. Por horas. Com leveza e encantamento, ele era capaz de dividir seu conhecimento erudito com simplicidade, ao longo de 50 anos em sala de aula. Atualmente, ensinava a disciplina de história da gastronomia na FAM (Faculdade das Américas) e em cursos na Casa do Saber, em São Paulo.

O professor influenciou nomes fortes da nova geração de chefs e estudiosos da cozinha brasileira, como Rodrigo Oliveira, do Mocotó, e Paulo Machado, do instituto de pesquisas que leva o seu nome, concentrado sobretudo na pesquisa da cozinha pantaneira.

Fixava-se com particular profundidade, aliás, nos temas referentes à nossa cozinha. Conduziu em 2009 um levantamento inédito sobre as tradições do Pantanal; investigou como o “delicado franguinho” foi da África ao Brasil, em “O Frango - História e Gastronomia” (ed. Usina da Edição); buscou responder por que a presença do Oriente Médio no país é tão decisiva e como ela se reflete na culinária. Em “Árabes no Brasil - História e Sabor” (ed. Boccato), por exemplo, destaca a naturalidade com a qual brasileiros consomem quibes e esfirras, como se fosse um hábito tradicional nosso.

Há pouco, estava envolvido em estudos para sustentar a tese de que a cozinha paraense é a mais antiga do Brasil. Amparava-se em evidências arqueológicas, em registros de que “os pratos de mandioca com peixe, fundamentais na sustância das civilizações pré-colombianas na Amazônia, existiam há 6.000 anos”, como disse à Folha. 

Sempre atento aos detalhes e ao contexto histórico, produziu e compartilhou de maneira muito generosa um conhecimento referencial na gastronomia brasileira.

Maranhão, que deixa dois filhos, será velado neste sábado (8), no Cemitério do Araçá, das 8h às 12h. A cerimônia de cremação será às 14h, no Crematório da Vila Alpina.

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