Reconstruído, Liverpool quer subir ainda mais alto, mas sem perder a alma

No começo da temporada passada do Campeonato Inglês, os torcedores do Liverpool, que enfrenta neste sábado (1º) o Leicester, se divertiram circulando uma foto cuja legenda dizia "o Liverpool F.C. como carro".

A imagem mostrava um veículo Frankenstein, com pedaços tirados de três outros: a dianteira vinha de um carro esporte, o meio de um tedioso sedã para a família, e a traseira de um carro velho, enferrujado e sem rodas. E pela primeira metade da temporada, a imagem parecia servir como metáfora perfeita para o time.

O ataque do Liverpool, líder da atual edição da liga inglesa e comandado pelo transcendente Mohamed Salah e formado por Sadio Mané e Roberto Firmino, dois talentos que não ficam muito a dever diante do egípcio, atravessava defesas em alta velocidade, aterrorizando as zagas da liga. O meio de campo, personificado pela garra estereotipicamente inglesa de Jordan Henderson e James Milner, fazia seu trabalho com competência, ainda que não espetacularmente.

Mas a defesa? Em muitas das partidas do time, os quatro jogadores da zaga pareciam não ter líder, ou pior: pareciam confusos. Não importa que goleiro jogasse, ele sempre demonstrava insegurança.

Ao longo dos últimos 12 meses, porém, o Liverpool passou por uma reforma significativa - e dispendiosa. Em janeiro, o clube pagou uma quantia recorde pela contratação de um zagueiro, ao trazer Virgil van Dijk, do Southampton, e esse reforço serviu de base para a defesa da equipe a caminho da final da Liga dos Campeões.

O Liverpool voltou a pagar um valor recorde na atual janela de transferência para trazer o goleiro brasileiro Alisson Becker, que estava na Roma, e realizou negócios da ordem de dezenas de milhões de libras para contratar Naby Keita (do RB Leipzig, da Alemanha), e Fabinho (do Monaco), como reforços para um meio de campo subitamente repleto de opções.

Hoje em dia, se os torcedores distribuírem fotos do Liverpool como carro, o resultado seria um modelo altamente moderno, sem pontos fracos e muito aerodinâmico. Mas depois de investir 210 milhões de libras em contratações nesta janela para coroar um processo de reforma de elenco que durou alguns anos, o treinador Jürgen Klopp sabe que seu time não pode continuar por muito mais tempo a ser brilhante e incansável mas ficar apenas à beira da grandeza.

"Sei que as pessoas querem ouvir que eu lhe disse que somos capazes de vencer isso ou aquilo, mas na verdade não faço ideia de se vamos vencer alguma coisa", disse Klopp em entrevista na excursão de pré-temporada de seu clube aos Estados Unidos. "Mas vamos tentar ao máximo".

A história do Liverpool não é apenas a de um clube que está tentando voltar a jogar em alto estilo e a disputar títulos. Também é a história de um clube que busca continuar sendo identificavelmente local em um esporte que se globalizou inteiramente - e tenta encontrar seu espaço entre o Manchester United e o Arsenal (controlados por americanos que só se preocupam com maximizar lucros e são cada vez mais detestados pelas torcidas dos dois clubes) e o Manchester e o Chelsea (controlados por capital petroleiro estrangeiro), que continuam competitivos financeiramente e em campo.

"Nós falamos em ter um coração local mas pulso mundial", disse Peter Moore, presidente-executivo do Liverpool. Trata-se de um clichê e de um jargão de marketing, claro, mas em Liverpool a frase também soa verdadeira. "A cidade é firme em suas opiniões. É única. Gosta de se ver como a República Popular de Liverpool. Vemo-nos como diferentes".

Para descobrir o quanto o clube avançou, no entanto, primeiro é preciso recuar um pouco ao passado. Em 2010, sob o controle dos americanos Tim Hicks e George Gillett, o Liverpool estava a um dia da falência quando John Henry e sua New England Sports Ventures, mais tarde Fenway Sports Group, tomaram o controle do clube a preço de banana, depois que os credores da equipe recorreram aos tribunais para forçar uma venda.

O grupo de Henry se tornou dono de uma equipe com um passado muito orgulhoso, mas completamente desordenada; o treinador e o melhor jogador do time estavam para sair, e seu estádio, o histórico Anfield, precisava de reforma ou substituição.

Os novos proprietários cometeram alguns erros no começo, e desperdiçaram parte da boa vontade que haviam conquistado por simplesmente terem derrubado Hicks e Gillett. O clube passou por um par de treinadores e diretores de futebol, e em geral não se provou capaz de identificar jogadores de elite para aquisição, ou de persuadi-los de que o Liverpool merecia uma oportunidade. Houve bons momentos, entre os quais o segundo lugar no Campeonato Inglês em 2014, mas o Liverpool em geral fracassou em chegar aos quatro primeiros postos, que garantem vagas para a Liga dos Campeões, e só continuou a ser considerado como time grande por conta do respeito com relação à sua história.

O nascimento do novo Liverpool talvez date de 8 de outubro de 2015, o dia em que o Fenway Sports Group anunciou a contratação de Klopp, até então treinador do Borussia Dortmund. Em menos de três anos, Klopp se tornou a face do clube - com sua exuberância, os abraços que dá nos jogadores, os cumprimentos efusivos. O agressivo sistema de jogo chamado gegenpressing, ou contrapressão, que ele trouxe para o clube é a chave para o impiedoso ataque do Liverpool, e assisti-lo em prática pode ser um prazer - desde que você não torça pelo time que está sendo vítima da pressão.

Mas Klopp também deu foco à busca de contratações do Liverpool. Com a ajuda de Michael Edwards, antigo diretor de análise que se tornou vice-presidente de futebol do clube, ele criou uma equipe capaz de jogar do jeito que ele deseja, e de desafiar rivais que contam com mais dinheiro.

Isso permitiu que os proprietários americanos do clube ficassem à sombra, onde se sentem mais confortáveis, para concentrar suas atenções no trabalho estrutural, tedioso mas necessário. (Henry e o Fenway Sports Group não quiseram ser entrevistados para este artigo.)

O Anfield foi reformado, com elevação de sua capacidade em oito mil lugares. Os preços dos ingressos passaram três anos congelados, e o Fenway Sports Group pediu desculpas por ter planejado aumentos de preços alguns anos atrás, que foram recebidos com indignação generalizada. Os proprietários aprenderam do modo mais difícil a sacrificar a receita de bilheteria, nem tão importante, para continuar a atrair os torcedores ao estádio, e para mantê-los cantando em apoio ao time.

Mas a reconstrução do Liverpool em campo não aconteceu com a ajuda de uma fórmula mágica. Sob a estrutura atual, Klopp e seu pessoal identificam os jogadores que desejam, Mike Gordon do Fenway Sports Group aprova as verbas, e Edwards faz o trabalho braçal necessário para as contratações.

"Não acho que faça sentido eu ligar para eles - os agentes - e passar por um longo processo de 500 telefonemas para contratar um jogador", disse Klopp. "Eu realmente não teria tempo para isso no meu dia".

Klopp espera que o estilo de jogo venha a levar o Liverpool à vitória, e quanto a isso ele não aceita compromissos. O sistema de jogo do Liverpool depende do condicionamento físico, e adquirir uma compreensão instintiva dos pontos de marcação para a contrapressão é um aprendizado difícil. Essa agressividade também pode ser o ponto fraco do sistema, aliás, porque compele os adversários, especialmente os mais fracos, a jogar na retranca, cedendo a posse de bola em troca de mais segurança.

Em seis jogos contra os três times do Inglês que terminaram rebaixados na temporada passada, o Liverpool registrou três empates e uma derrota. Foram esses resultados, acima de tudo, que colocaram a equipe em quarto lugar na classificação final do campeonato, atrás do Manchester City de Pep Guardiola e do Tottenham de Mauricio Pochettino, e também do muito mais pragmático Manchester United, de José Mourinho.

Mas o Liverpool jamais sacrificará seu estilo, disse Klopp - ao menos não enquanto ele estiver no comando.

"Não pensei em mudar de tática e começar alguma coisa completamente nova", disse Klopp. "Temos de melhorar em todos os departamentos. É assim que as coisas são, e antes de tudo precisamos voltar a demonstrar o nível do ano passado, e em seguida demonstrar consistência; com base nisso, poderemos construir algo mais. É esse o plano".

Enquanto Klopp continuar - o contrato dele dura mais quatro temporadas -, jogar com dedicação será primordial. Mas embora os dirigentes do clube odeiem falar a respeito publicamente, sabem que é hora de produzir algum resultado que comprove que estavam certos quanto ao estilo, os gastos, as metas. Afinal, o último título do clube continua a ser a Copa da Liga de 2012.

O Liverpool ainda não é o melhor time do mundo, além disso; de acordo com Klopp, não é nem mesmo o melhor da Inglaterra. Mas talvez seja o mais temido, e ao iniciar sua terceira temporada completa no comando da equipe, Klopp enfim tem um time perfeitamente enquadrado às suas preferências.

Mas conquistar troféus com esse time vai requerer um grande esforço. O futebol do Liverpool empolga, mas também precisa produzir vitórias. O clube precisa obter mais patrocínios internacionais, mas quer permanecer reconhecivelmente local. Os proprietários precisam satisfazer as expectativas dos torcedores, mas não a qualquer custo.

Na verdade, o carro do Liverpool precisa funcionar com perfeição, parecer bonito, e não derrapar nas curvas difíceis. São demandas que Klopp - cujo time venceu mais jogos por 7 a 0 (dois) do que por 1 a 0 (um) na temporada passada - ainda está lutando por reconciliar.

"Os meninos precisam curtir seu futebol, nós temos de curtir nosso futebol, ou as coisas não fazem sentido", ele disse durante a excursão aos Estados Unidos. "Não podemos ganhar por 1 a 0 aqui, 1 a 0 ali - sei que se você ganhar qualquer troféu no fim, as pessoas provavelmente ficarão felizes. Mas ainda assim o ano todo terá sido um lixo".

Duas semanas depois, em texto publicado no programa da última partida de pré-temporada do time, ele parecia estar expressando a opinião oposta: "Não permitam que as expectativas cresçam demais, porque o Campeonato Inglês é jogo duro, e não futebol rápido", ele escreveu.

"Não é o caso de vencer por 5 a 0", ele acrescentou, "mas sim de vencer cinco vezes por 1 a 0".

Leicester x Liverpool
Às 8h30, em Leicester
Na TV: ESPN Brasil

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