Reconheci-me na fala do ministro sobre brasileiros que roubam em hotéis

Esta semana estava começando no Principado de Mônaco, com céu azul sobre um Mediterrâneo apenas pincelado de pequenas nuvens num friozinho civilizadíssimo de 15ºC.

No balcão do quarto do luxuoso Hôtel de Paris, tinindo de novo após longa reforma, observo a praça do famoso cassino de Monte Carlo e respiro fundo. Mesmo sem que a lua apareça, enfrento a transformação: das entranhas sobe um frêmito enquanto, nesse cenário dourado, nasce em mim um canibal predador.

Culpa deste hotel, joia da coroa de uma velha monarquia que é sua principal acionista. E minha, por ter nascido no Brasil: afinal, como explicou didaticamente nosso (?) ministro da Educação ao povo que o acolheu (o cara é colombiano), “o brasileiro é um canibal”. Por quê? Porque rouba coisas de hotéis onde se hospeda.

Esse elemento, Ricardo Vélez Rodríguez, é do elenco do circo escatológico do Bozo —o grande picadeiro em que Bolsonaro transformou nosso governo. Entre os palhaços em cena, Vélez é uma mente medieval cuja credencial é ser adorador do astrólogo fracassado Olavo de Carvalho.

Parece inacreditável que um estrangeiro assuma um alto posto no país que o acolheu e, já nos primeiros dias na ribalta, use a função para ofender os brasileiros. É como se uma autoridade brasileira na Colômbia saudasse os locais chamando-os de mentecaptos, tomando como base a triste figura de Vélez, que obviamente não representa o pensamento dos colombianos, sendo apenas uma deformação do gênero humano.

Mas, como é meu governante, fiz esse pequeno exercício de me assumir como brasileiro, turista e, portanto, um selvagem canibal. E eis que tenho que confessar, a alma constrita: a carapuça coube como uma luva em minhas ágeis mãos de gatuno.

Eu aqui na Riviera Francesa, como o ladrão de casaca de Hitchcock no filme estrelado justamente por Grace Kelly, mãe de príncipe cujo hotel agora me faz cair em tentação.

E pior: como bom sociopata, não sinto o menor sinal de culpa ou hesitação enquanto, enquadrado pelo Mediterrâneo a perder de vista, antecipo o movimento de surrupiar aqueles xampus de luxo de que nem sequer necessitam meus saudosos cabelos. 

Afinal, repito, é tudo culpa do príncipe que insiste em colocar produtos que brilham como diamantes e se insinuam pornograficamente ao alcance das mãos (jogo pesado: ao lado do sabonete sapecou, numa caixa de um dourado hipnótico, um vidro de perfume Guerlain).

É como —já nos ensinou, referindo-se a outro tipo de butim, o chefe da trupe do Vélez—a culpa é das mulheres quando, com seus corpos belos e provocantes, atraem a “natural” tendência para o estupro de gente como o Bozo (que já declarou em outro picadeiro, a Câmara dos Deputados, só não estuprar uma colega por ela não ser seu tipo).

Meu outro motivo de não ter culpa de surrupiar os cosméticos é saber que os hotéis até desejam que eles sejam levados, para estender nos hóspedes as memórias de sua experiência.

Anos atrás, num hotel de luxo de Milão, o Príncipe di Savoia, perguntei à diretora que voltava de férias se ela conseguia relaxar hospedando-se em outro hotel de luxo da mesma cadeia Dorchester. “Consigo”, disse. “Assim que entro no quarto, recolho correndo todas as amenidades, enfio na mala e começo a relaxar.”

Para confirmar, depois de saquear apropriadamente o banheiro aqui no Hôtel de Paris, desci para jantar no Alain Ducasse e perguntei a uma diretora o que ela achava de aves de rapina como eu. 

“Isso não é roubar, aquilo é feito para guardar de lembrança!”, disse, ensinando: “Minha técnica é pegar tudo logo na chegada! Num bom hotel, a equipe repõe tudo todo dia, para satisfação do cliente”. Gente de todo o mundo faz isso, contou ela. Há também os que pegam coisas que não são brindes, mas isso acontece com gente de todos os países.

Xampu, cotonete, algodão, touca de banho: não se envergonhe de ser parte da humanidade, só se envergonhe se for dessa parte que, como Bozo, Olavo, Vélez, parecia banida há séculos, mas insiste em atravessar eras como as baratas.

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