Quando a civilização parece retroceder

Às vezes dá vontade de parar de ler jornal. E olhe que sou viciado nessa arte. Comecei a ler o noticiário internacional (quase todo ele) quando da revolta dos húngaros contra a ocupação soviética, em 1956. Tinha 13 anos, idade em que as pessoas normais ou simplesmente não lêem ou lêem os quadrinhos, o noticiário esportivo ou revistinhas de sacanagem.

Daí em diante não parei mais de ler compulsivamente, até porque a leitura logo passou a fazer parte da obrigação profissional.

Por isso mesmo, sou bem consciente de que o noticiário trata em geral da anomalia, não do lado bom da vida. É óbvio que, se cai um avião, sai na capa, não porque os jornalistas somos um grupo de tarados necrófilos mas porque a anomalia (a queda de um avião) é notícia. Que todos os aviões cheguem e partam no horário, não é notícia.

Más notícias, portanto, não me desestimulam da leitura. Às vezes, é verdade, o acúmulo delas é tamanho que bate uma profunda tristeza, mas não necessariamente o desejo de desistir.

O que está acontecendo agora, no entanto, parece superar a existência de anomalias. Parece estar havendo um retrocesso civilizatório (de resto evidente durante a campanha eleitoral). Cito apenas três exemplos vistos na Folha desta sexta-feira (8).

Primeiro, a polêmica em torno do decote da deputada estadual catarinense Ana Paula da Silva (PDT). Não, não é o decote que representa a anomalia. O que assusta é o massacre nas redes sociais a que foi submetida, tão violento que, como confessou à Folha, “não tinha um osso que não doesse".

Se fosse no tempo da minha avó, talvez até fizesse algum sentido. Mas será que não evoluímos na escala civilizatória para entender que a pessoas têm o sagrado direito de se vestirem como quiserem?

Passo adiante até porque Mariliz Pereira Jorge, com o brilho habitual, já disse tudo o que eu gostaria de dizer a respeito e até algo mais.

Na capa do caderno Cotidiano em que foi publicada a entrevista da deputada, o título é tremendo: “A cada 3 dias, uma criança é internada após acidente doméstico com arma de fogo".

Já seria uma aberração por si só, mas torna-se insanidade quando se sabe que, dias antes dessa constatação, foi proposto um pacote que libera a posse de armas. O mais elementar sentido comum indica que, se já não é civilizado esse índice, a liberdade de possuir armas em casa só pode fazer as internações aumentarem para “uma criança a cada dia”.

Ao lado dessa reportagem, fica-se sabendo que quase dobrou em 2018 o número de suicídios entre policiais militares paulistas. Se pessoas às quais temos que confiar a nossa segurança sentem-se, elas próprias, tão inseguras que preferem suicidar-se, é a civilização que retrocede, não?

Nem vou mencionar eventos de outros dias, como Mariana e Brumadinho, mas contribui para tirar os olhos do jornal (no caso da tela do IPad) a notícia de que um incêndio atingiu o Ninho do Urubu, centro de treinamento do Flamengo, na manhã desta sexta-feira (8) no Rio de Janeiro. Dez mortos e três feridos, dois deles em estado grave.

Acidentes acontecem, eu sei. Mas nada do que citei parece representar um passo adiante no processo civilizatório de um país tão primitivo como o Brasil.

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