Proximidade de autor e Rosa Luxemburgo é virtude e calcanhar de aquiles de biografia

Quando criança, a pequena Rosa certa vez acendeu um lampião usando a última nota de dinheiro que havia na casa dos Luxemburgo, em Zamosc, cidadezinha no leste da Polônia.

Simbólico para quem viria a se tornar a principal ativista comunista do século 20, o episódio é narrado pelo comunista alemão Paul Frölich (1884-1953) em “Rosa Luxemburgo: Pensamento e Ação”.

Espécie de biografia publicada em 1939, em Paris, quando Frölich fugia do nazismo em casa, o livro foi lançado no Brasil em coedição da Boitempo com a Iskra no centenário do assassinato da militante pelas forças de segurança do governo alemão, em 15 de janeiro de 1919, aos 47 anos.

A convivência de Frölich com Rosa —ambos ajudaram a fundar o Partido Comunista da Alemanha (KPD), em 1918— é, ao mesmo tempo, uma virtude e um calcanhar de aquiles para o livro.

Escrito nos anos 1930, esse ensaio biográfico tinha o objetivo claro de restabelecer Rosa aos olhos dos comunistas alemães, em meio às lutas de facções internas que drenavam a força do KPD diante da ascensão do nazifascismo.

Um dos objetos de disputa era o legado de Rosa. À época, já emanavam de Moscou, onde Stálin consolidava seu poder, diretrizes para desacreditar a autora de “A Acumulação do Capital” (1913).

Criou-se a caricatura do “luxemburguismo”, como se Rosa houvesse se afastado do “marxismo-leninismo puro” da Revolução de 1917. Isso porque o espírito crítico da polonesa não poupou os bolcheviques durante o processo revolucionário na Rússia.

O que Rosa escreveu em “A Revolução Russa” (publicado postumamente, em 1922) acabou se revelando uma profecia da União Soviética: “A vida dos sovietes esmoreceu, tornando-se ‘uma vida aparente, na qual apenas a burocracia subsiste como elemento ativo’”.

Em referência aos líderes bolcheviques, escreveu ela: “O grupo dominante na União Soviética se autointitulou, dentro do movimento comunista internacional, de ‘autoridade imaculada’, a qual exige fé cega e sufoca qualquer tentativa de crítica”. Um prenúncio dos expurgos stalinistas dos anos 1930.

A política agrária adotada pelos bolcheviques após 1917 na Rússia também foi criticada por Rosa, para quem a partilha dos latifúndios entre os camponeses “beneficia sobretudo os camponeses ricos e os usurários que formam a burguesia rural”. Ela defendia a nacionalização das terras.

Frölich foi encarregado, em 1921, de organizar a obra de Rosa para publicação. A ideia era resgatar o que Lênin classificara como “uma teoria muito proveitosa (...) para a educação de muitas gerações de comunistas de todo o mundo”.

No espírito de defender o legado da ativista judia diante dos grupos stalinistas, e com pouco acesso aos arquivos de Rosa, o trabalho de Frölich desemboca em uma hagiografia, na qual a protagonista parece nunca, ou quase nunca, cometer erros.

Quando o autor enfim aponta um equívoco —na sua visão— nas posições de Rosa, insinua-se uma crítica machista: “Já não lhe era possível estruturar a política de forma coerente, sem contradições internas. E assim se levanta, de forma perturbadora, a questão: eram as forças físicas que já não bastavam para a missão, ou a essa grande líder (...) faltava aquela perfeição do comandante revolucionário que em Lênin se tornou carne e vida?”.

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