Príncipe das galáxias

Doutor Drauzio Varella, gênio da raça, já descreveu com a precisão habitual a sensação de acordar e correr:

“Digo por experiência própria. Há 20 anos corro maratonas, provas de 42 quilômetros que me obrigam a levantar às cinco e meia para treinar. Tenho tanta confiança na integridade de meu caráter, que fiz um trato comigo mesmo: ao acordar, só posso desistir de correr depois de vestir calção, camiseta e calçar o tênis. Se me permitir tomar essa decisão deitado na cama, cada manhã terei uma desculpa. Não há limite para as justificativas que a preguiça é capaz inventar nessa hora. Ao contrário do que os treinadores preconizam, não faço alongamento antes, já saio correndo, única maneira de resistir ao ímpeto de voltar para a cama. O primeiro quilômetro é dominado por um pensamento recorrente: ‘não há o que justifique um homem passar pelo que estou passando’. Vencido esse martírio inicial, a corrida se torna suportável. Boa mesmo, só fica quando acaba. Nessa hora, a circulação inundada de endorfinas traz uma sensação de paz celestial, um barato igual ao de drogas que nunca experimentei.”

Pura verdade, Doutor. É exatamente isso, começar a correr é mesmo um martírio. O cérebro mandando parar, quer dizer, sugerindo nem começar. E a gente lutando contra. Mas o martírio pode ser supremo caso… esteja chovendo. Cá para nós, é uma desculpa e tanto. Olhar pela janela e ver o ricochete dos pingos permite negociação, parece razoável adiar o treino molhado por uma sessão seca no dia seguinte. Várias vezes fiz esse acordo comigo e, na maioria, cumpri a segunda parte.

Só que tem dia que não dá. Falta agenda. É na chuva ou nada. Nessa segunda-feira chuvosa de novembro, me coloquei em sinuca. Iria viajar, não teria buracos na agenda, precisava treinar. E calcei os tênis torcendo para que a chuvinha desse uma trégua ao menos no início do trote. Porque fazem a total diferença os primeiros minutos de aquecimento. Começar seco, suar e depois tomar um chuvisco por cima é algo até agradável. Mas tomar uma ducha com o corpo frio, logo sentir os pés encharcados, entra na “categoria martírio” do Doutor Drauzio. Martírio premium, martírio master, inferno.

Só que há o outro lado, no caso, o do paraíso. Vencido o treino, planilha cumprida, viramos campeões. Era só um exercício físico, mas a sensação é de batalha épica terminada. Vencemos. Lutamos contra o dragão da preguiça matinal e espetamos nele a lança da perseverança. Como é mesmo aquela expressão das galáxias? Isso, depois de encarar um treino chuvoso, a gente se torna o príncipe das galáxias.

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