Política causou derrapagem na alta do mercado

É costume dizer que os mercados em alta precisam galgar uma muralha de preocupações. Quando o último dos preocupados se torna otimista convicto, o único caminho que resta ao mercado é o da queda. Pode ter sido isso que acabou de acontecer: já havia tanto otimismo incorporado aos preços dos ativos financeiros –especialmente nos Estados Unidos– que, no instante em que a preocupação retornou, só lhes restava cair. Até que ponto os eventos em curso podem exacerbar as preocupações? Muito é a resposta.

Como as reuniões anuais do FMI (Fundo Monetário Internacional) e do Banco Mundial deixaram claro, na semana passada, não faltam motivos para preocupação. A novidade é que chegou uma disputa entre velhas e novas superpotências. E isso pode mudar tudo.

A boa notícia é que o boletim Perspectivas Econômicas Mundiais do FMI continua a prever forte crescimento econômico, com a produção mundial avançando em 3,7% este ano e no ano que vem (em termos de paridade de poder aquisitivo), como aconteceu em 2017. A má notícia é que isso representa uma redução de 0,2%, para 2018 e 2019, no crescimento previsto pelo fundo em sua projeção de abril. Acima de tudo, "o balanço dos riscos [...] se alterou para o negativo, no contexto de uma incerteza política elevada".

Para justificar a redução na projeção, o relatório enfatiza surpresas negativas no crescimento de alguns países de alta renda no começo de 2018; as guerras comerciais iniciadas pelos Estados Unidos; e problemas em economias de mercado emergente causados por fraquezas nacionais específicas, condições financeiras mais duras, tensões geopolíticas, e preços mais altos para o petróleo.

O FMI enfatiza que a alta nos preços do petróleo, relacionada em parte à reimposição de sanções contra o Irã, pode se agravar. Isso danificaria os países vulneráveis por conta de suas importações de petróleo. Além disso, com crescimento acima do valor potencial e baixo desemprego em muitos países de alta renda, especialmente os Estados Unidos, a inflação pode surpreender com um retorno mais forte que o previsto. Mesmo sem isso, a normalização monetária ainda tem muito a avançar nos países de alta renda.

Como diz Warren Buffett, "você só descobre quem está nadando nu quando a maré vira". Os mais nus são aqueles que têm balanços vulneráveis –alto endividamento e grandes descompassos em termos de vencimentos, liquidez e câmbio. Quando a maré das condições financeiras propícias se for, perturbações econômicas e financeiras serão inevitáveis. Algumas economias emergentes já sucumbiram, com Argentina e Turquia como exemplos óbvios. Um grande declínio no apetite por risco, causado possivelmente pelas guerras comerciais ou pela aceleração no aperto monetário dos países de alta renda, pode bem deflagrar uma fuga de capital mais generalizada.

Uma alta na aversão a riscos pode afetar a estabilidade financeira –e assim a econômica– de maneira mais ampla. As avaliações dos ativos de risco estão distendidas, em muitos casos, e a vulnerabilidade dos balanços é pandêmica, como o "Relatório sobre a Estabilidade Financeira Mundial" (GFSR, na sigla em inglês) deixa bem claro. Uma pequena mudança nas condições financeiras mundiais bastou para danificar algumas economias emergentes. E, como o GFSR aponta, a dívida agregada dos domicílios, empresas não financeiras e governos, em países com sistemas financeiros sistemicamente importantes, hoje monta a mais de US$ 167 trilhões (R$ 622 trilhões), ou mais de 250% do produto bruto combinado do planeta, ante 210% em 2008. Muitos devedores estão vulneráveis a uma alta nas taxas de juros.

O governo dos Estados Unidos não ajudou, ao embarcar em uma expansão fiscal pró-cíclica altamente irresponsável, para agravar o que o FMI designa como uma dinâmica de dívida já insustentável. Mas não é difícil encontrar excessos também no setor privado. Na zona do euro, o endividamento dos setores empresarial e governamental continua elevado. A economia chinesa também está fortemente endividada.

Enquanto isso, os preços de ativos importantes continuam altos. Nos Estados Unidos, a relação preço/lucro ciclicamente ajustada, desenvolvida pelo economista Robert Shiller, ganhador do Prêmio Nobel, continua mais alta do que em qualquer momento dos últimos 137 anos –excetuados 1929 e o final da década de 1990 e começo da década de 2000. Isso se aplica mesmo se levarmos em conta uma média móvel de oito anos para sua receita real, em lugar da média usual de dez anos, com isso excluindo os anos de crise. Há um acidente à espera de acontecer. Na semana passada, um pequeno acidente aconteceu, como seria de esperar.

A economia e os sistemas financeiros do planeta estão frágeis –e ninguém sabe o quanto, até que sejam testados. Mas a fonte de fragilidade mais importante é política: um legado postergado da crise financeira. Em país após país, populistas e nacionalistas estão no poder ou perto dele. As características salientes desses políticos são miopia e ignorância inamovível. É inevitável que eles espalhem incerteza. O governo italiano, por exemplo, solapou a confiança em que a Itália continuará na zona do euro, com resultados perigosos.

A maior mudança aconteceu nos Estados Unidos. Na semana passada, o presidente Donald Trump rompeu com um precedente duradouro ao criticar um recente aperto de política monetária ordenado pelo Fed (Federal Reserve), o banco central dos Estados Unidos. Sob seu governo, os Estados Unidos também se envolveram em um ataque contra o sistema de solução de disputas da OMC (Organização Mundial do Comércio) e em uma guerra comercial escancarada com a China.

Acima de tudo, o governo americano parece determinado a promover uma nova guerra fria contra a China. Trump fala até em impedir que a economia da China se torne maior que a dos Estados Unidos. Mesmo que esse conflito continue a ser uma guerra fria, sem se tornar uma guerra aberta, seria muito mais significativo para os Estados Unidos do que sua rivalidade com a União Soviética. A China é muito mais populosa e sua economia é administrada com muito mais competência, além de ser mais dinâmica e mais integrada à do restante do planeta.

Uma insensatez como essa talvez não importe muito em um momento positivo. Mas o que vai acontecer na próxima crise? As autoridades cooperarão, como fizeram em 2008 e 2009? Essa é uma questão forte dentro dos países, dentro de grupos de países como a zona do euro, e para o mundo como um todo. A economia mundial aberta poderia entrar em colapso.

Vivemos tempos perigosos –bastante mais perigosos do que muitos observadores hoje reconhecem. Os alertas do FMI vieram em momento oportuno, mas foram previsivelmente discretos. Nosso mundo está sendo virado de cabeça para baixo. A ideia de que a economia continuará a avançar enquanto isso acontece é uma fantasia.
 
Tradução de PAULO MIGLIACCI

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