Pimenta caseira é tão importante quanto a comida

Seu João tinha um boteco. Ainda tem, a bem da verdade. O Chiquinho trabalhava como garçom no boteco do seu João. Não trabalha mais. No boteco do seu João, o Chiquinho era o encarregado de fazer a pimenta da casa. Rapaz, que pimenta! Chiquinho se tornou o garçom mais querido do boteco do seu João. Ficou tão popular que resolveu alçar voo solo. Abriu boteco próprio ao lado do bar do seu João.

Hoje Chiquinho fornece sua pimenta ao antigo patrão.

A pimenta da casa é coisa séria e assim deve ser tratada. Sem exagero, ela é tão importante quanto a comida. Divide os bares e restaurantes em duas categorias: os sêniores e os mirins. Mirim é quem dá molho de pimenta industrializado para o cliente.

Essa classificação pode ser ampliada para 5 categorias, em ordem crescente de garbo:

Só tem pimenta industrial Tem as duas, mas traz primeiro a industrial; se o cliente pede especificamente pela pimenta da casa, alguém vai buscar Só tem a pimenta da casa, levada à mesa a pedido do cliente Já deixa a pimenta da casa sobre todas as mesas Possui um sortimento de pimentas da casa

A elite dos restaurantes pimenteiros de São Paulo inclui pesos-pesados como o Tordesilhas e o Jiquitaia – não por acaso, a linha de frente da culinária brasileira na cidade.

Mas a pimenta da casa não liga para ambiente e serviço. Ela brilha também nos botequins mais humildes. Pegue o Bar 300, um lugar bem simplão com localização das mais infelizes: quase na esquina da avenida Rio Branco, nas franjas da cracolândia central (caso você não saiba, agora a cracolândia se expandiu até para a SPFW).

O Bar 300 se orgulha da coxinha de massa de milho e recheio de pernil, a prata da casa. E do molho de pimenta, tão bom que é vendido para viagem. Eu comprei e deixei cair no chão da cozinha de casa. Sou uma anta.

O Estadão, reduto de taxistas no centro e uma das raras casas que funcionam 24 horas por dia nestes tempos, é outro bom exemplo de pé-sujo nobre. O famoso sanduíche de pernil é OK; fica maravilhoso com algumas gotas da pimenta da casa.

Não são todas as culinárias que prezam a pimenta. Italianos e franceses ignoram quase completamente o paladar picante. Culinárias orientais e latino-americanas têm uma abordagem distinta para o picante. São outras ligas, não falemos delas agora.

Em São Paulo, a pimenta da casa é representada com galhardia em três grandes cozinhas: a brasileira (alta e baixa gastronomia), a portuguesa e a árabe. Neta, mãe e avó.

Assim como nós, os portugueses têm o hábito de sempre deixar a pimenta sobre a mesa. Use-a com parcimônia sobre os espetaculares bolinhos de bacalhau da Academia da Gula, na Vila Mariana. Ou no arroz de pato da Quinta de Santa Maria, no Alto da Lapa.

Discretos na pimenta, os árabes entendem do riscado como poucos. Prove o molho caseiro do restaurante Syria, que faz o melhor kebab da cidade. Ou dê um pulo no Paraíso e, se tiver a sorte de conseguir uma mesa, peça o molho picante da Tenda do Nilo. As irmãs donas do restaurante encomendam pimenta murupi de parentes que vivem em Manaus –onde a comunidade libanesa também é numerosa (para saber mais, leia Milton Hatoum).

A pimenta da casa segue uma taxonomia própria, pode ser classificada mediante alguns critérios. Um deles é a base, que pode ser ácida (vinagre), alcoólica (cachaça) ou oleosa (óleo vegetal ou azeite).

Pimentas de vinagre são menos concentradas e podem ser aplicadas com razoável generosidade. É o caso do molho que acompanha as coxinhas do bar Veloso, sucesso de crítica e de público.

Quando a pimenta repousa em óleo, recomenda-se prudência no uso. Elas têm ainda uma característica capciosa: o óleo não se distribui de modo uniforme pela comida. Algumas garfadas serão suaves, outras serão assassinas.

Mas não é só a base que define a força de uma pimenta. Tão importante quanto ela é a pimenta em si. Cada casa opta por uma variedade de acordo com o perfil desejado de sabor. Malagueta é picante e pouco aromática. Dedo-de-moça tem aroma o clássico de pimenta, mas arde só de leve. Cumari é forte no nariz e na boca. Pimenta-de-cheiro, como o nome revela, se destaca pelo perfume.

Para o equilíbrio perfeito, combinam-se duas ou mais variedades.

Como nos vinhos de Bordeaux, o assemblage define o perfil da pimenta da casa. Além das pimentas, entram na receita a base e temperos como sal, louro, alho e cebola.

Uma grande pimenta requer um master blender, título dado ao profissional que seleciona, nos barris, os uísques da composição de um bom scotch.

Essa é a arte de Chiquinho. Master blender de pimentas. E botequeiro.

 

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