Pai ajuda a depor ditador do Sudão enquanto filho protesta contra governo

Enquanto manifestantes se agrupavam junto aos portões do quartel-general militar do Sudão, pedindo a deposição do ditador Omar al-Bashir, o chefe da Força Aérea do país saiu para falar com eles.

O tenente-general Salah Abdelkhalig, um veterano endurecido pelas muitas guerras do país, garantiu aos manifestantes que não tinham nada a temer dos militares. "Este Exército é o seu Exército", lembrou ele de ter dito. "Não vamos combater vocês."

O que poucos na multidão sabiam era que entre os rostos reunidos na frente dele estava seu próprio filho.

"Eu tinha de estar lá", disse o filho, Abdelkhalig Salah, 28, piloto de avião comercial cujas frustrações com décadas de declínio sob al-Bashir o levaram a protestar diante do escritório do pai.

Abdelkhalig, sentado ao lado dele no sábado (20) de uniforme militar em sua rica mansão em Cartum, assentiu. "Eu não concordei no início", disse. "Mas essa é a mudança que os jovens queriam."

A divisão familiar reflete as tensões maiores no Sudão, onde líderes civis e militares estão envolvidos em negociações acaloradas sobre o futuro deste país vasto e empobrecido. Cada lado pretende tomar o controle, prometendo desfazer o legado de três décadas de mau governo sob o líder autocrata Omar al-Bashir.

Abdelkhalig e outros generais graduados depuseram al-Bashir em um golpe sem derramamento de sangue na madrugada de 11 de abril. Eles usaram dispositivos para bloquear os celulares dele, e quando al-Bashir percebeu que tinha sido enganado ficou furioso e surpreso, segundo Abdelkhalig, revelando pela primeira vez detalhes de como o golpe foi engendrado.

Agora Abdelkhalig é um dos homens mais poderosos do Sudão, parte do Conselho Militar de Transição, de dez membros, que comanda o país. E o ex-presidente descansa numa famosa prisão de Cartum. Ele é investigado por lavagem de dinheiro e outros crimes financeiros. Durante o fim de semana, promotores confiscaram US$ 112 milhões em reservas em uma batida na casa de al-Bashir, disse Abdelkhalig.

Mas derrubar al-Bashir poderá ser a parte mais fácil da revolução no Sudão.

Dezenas de milhares de manifestantes jovens continuam acampados diante do QG militar, recusando-se a sair até que os militares aceitem sua exigência de transição rápida para o regime civil. Até agora, o protesto foi um assunto pacífico e exuberante, atraindo multidões de jovens sudaneses que cantam, dançam, fazem discursos e namoram, visivelmente aliviados com o fim do regime sombrio e opressivo de al-Bashir. 

Mas as negociações sobre o futuro do país entre os militares e os líderes do protesto, conduzidas pela Associação de Profissionais Sudaneses, desmoronaram neste fim de semana e as tensões estão aumentando.

No domingo (21) à noite, dezenas de milhares de pessoas se reuniram em uma das maiores demonstrações já feitas, segurando seus celulares no alto para criar um mar de luzes. Os manifestantes se sentaram na borda de uma ponte ferroviária, batendo pedras em uníssono para enfatizar seus cantos. Alguns chamaram de "sujo" o tenente-general Abdel Fattah al-Burhan, o líder interino do país.

Na segunda-feira, al-Burhan pediu que os manifestantes abandonassem os postos de controle que cercam a área do protesto, onde voluntários em coletes amarelos revistam educadamente os manifestantes em busca de armas. A segurança é responsabilidade dos militares, salientou ele.

Os manifestantes viram a declaração como mais uma aposta para minar, e talvez pôr fim, ao protesto alegre que é sua maior vantagem.

Abdelkhalig disse em uma entrevista que apoia o regime civil, daqui a algum tempo. Mas advertiu sobre as consequências sombrias se os líderes do protesto continuarem a exigir que os militares entreguem o poder imediatamente aos líderes civis.

"Essa ideia nos levará à guerra civil", disse ele.

Os acontecimentos recentes marcam uma mudança abrupta para Abdelkhalig, que não muito tempo atrás era fiel a al-Bashir. Enquanto os protestos ganhavam corpo em fevereiro, al-Bashir promoveu Abdelkhalig a chefe da Força Aérea, numa iniciativa para reforçar sua autoridade desgastada.

Uma fotografia emoldurada dos dois ainda ocupa um lugar no canto da sala de Abdelkhalig. Mas quando os manifestantes acamparam nos portões do QG militar em 6 de abril, o general começou a mudar de ideia.

Ele já tinha se decepcionado com a corrupção, diz ele hoje, e as sanções dos Estados Unidos fizeram que sua entrada fosse recusada em vários países árabes, africanos e europeus, o que foi duro.

Então ele perdeu o controle de suas tropas. Quando homens armados leais a al-Bashir abriram fogo contra manifestantes, alguns soldados da Força Aérea desertaram e defenderam os manifestantes. Batalhas esporádicas irromperam fora dos portões militares.

A multidão aumentou. Abdelkhalig recebeu uma mensagem de texto de seu filho, Salah, dizendo que tinha aderido aos protestos.

O filho havia conhecido al-Bashir através de seu pai, o general.

"Ele brincava com todo mundo", lembrou Salah. Mas ele havia tomado consciência da pobreza e do isolamento que acompanhavam o governo de al-Bashir. O preço dos alimentos havia disparado e as notas de dinheiro eram tão escassas que as máquinas de saque estavam geralmente vazias.

A companhia aérea privada em que Salah trabalhava estava com dificuldades para conseguir peças avulsas, resultado da designação do Sudão pelos Estados Unidos como um Estado patrocinador do terrorismo. No ano passado ele se inscreveu na loteria do Green Card, esperando emigrar para os Estados Unidos.

"Eu sabia que meu pai estava dentro", disse ele. "Mas eu sou sudanês. Tinha de estar com meu povo."

À 0h de 10 de abril, o alto comando militar se reuniu para discutir o destino de al-Bashir, disse Abdelkhalig. Uma hora depois, eles concordaram em derrubá-lo. Nas horas seguintes, Abdelkhalig instruiu seus oficiais subalternos sobre os acontecimentos.

"Você precisa falar com eles", disse o comandante. "É muito perigoso não deixar que eles saibam o que está acontecendo."

Às 5h, os militares trocaram a guarda na casa de al-Bashir e bloquearam seus telefones e outras comunicações. Dois oficiais foram enviados para falar com o presidente, que estava confuso e então ficou furioso.

"Ele sentiu que as pessoas o haviam traído", disse Abdelkhalig, acrescentando que al-Bashir culpou Salah Gosh, o chefe da inteligência do país.

Fora dos portões do complexo, seu filho aderiu aos manifestantes que festejavam nas ruas.

"Nós comemoramos", disse ele. "Ainda hoje eu sinto que é um sonho. Ninguém pensou que Bashir sairia desse jeito."

Desde aquele momento inebriante, a liderança militar adotou uma abordagem conciliatória aos manifestantes e consentiu com várias de suas demandas. Al-Bashir está detido na prisão de Kober, onde seus próprios inimigos eram trancados e torturados.

Fotos e vídeos divulgados pelos militares, aparentemente feitos na casa dele, mostram fardos de notas de US$ 100 empilhados numa mesa, e o que parecem ser sacos de dinheiro. Outros assessores de al-Bashir foram postos em detenção domiciliar, como Gosh, o temido espião chefe, e o ex- vice-presidente, Ali Osman Taha, que certa vez ameaçou enviar milícias islâmicas das "sombras" contra os manifestantes. ​

"Alguns estão na prisão de Kober e alguns em outros lugares", disse al-Buhran em seu comunicado na segunda-feira.

Os novos líderes parecem estar à vontade no poder. Al-Burhan começou a trabalhar no antigo escritório de al-Bashir, no palácio presidencial na margem do Nilo.

A Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, que no domingo anunciaram um pacote de ajuda de US$ 3 bilhões para o Sudão, estão apoiando os generais. Abdelkhalig acredita que a demanda pelo governo civil é conduzida por "comunistas" nas fileiras dos manifestantes.

"Eles são uma minoria, mas têm boca grande", disse ele. "Essas pessoas são contra qualquer um que esteja no comando."

A conversão de Abdelkhalig ao regime democrático tem limites. Ele defende o Exército do Sudão contra acusações de abusos dos direitos humanos em Darfur e nos montes Nuba, onde a Força Aérea foi acusada de bombardear civis. Ele se recusa a enviar al-Bashir para o Tribunal Penal Internacional, onde o ex-presidente enfrenta acusações de genocídio e crimes de guerra.

"Você pode julgá-los aqui", disse ele sobre autoridades sudanesas acusadas desses crimes. "Mas você não pode entregá-los para os brancos julgarem. Os negros, nós vamos julgar aqui."

Perguntado sobre o que sente sobre al-Bashir hoje, ele respondeu com um sorriso: "Estou feliz por não estar no lugar dele."

E acrescentou: "Não sei qual seria meu sentimento se eu estivesse na rua. Mas estou no palácio."

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