Obstetras que rotulam mães: chega a ser desumano

Quando me descobri grávida, um duo de rock pesado, grande encontro do deslumbramento com o pavor, passou a comandar a trilha sonora dos meus pensamentos.

Daí você, moçoila prenha, esse ser humano pós-individualismo, essa mulher pré-outra, esse sujeito enlevado pela divindade (no instante exato em que é também soterrado pela constatação banal da continuidade), você, com todos os seus pedaços boiando num mar de hormônios loucos, senta-se na frente de um médico que te olha com aquela cara de: “Sei, você e a torcida do Flamengo”.

Mas, doutor, é um enjoo que não passa. E ele sorri e responde: “Normal”. Eu, que era superativa, só durmo. Normal. Eu, que tinha tantas certezas, só choro. Normal. Eu, que dizia tanto “eu, que”, agora coabito meu 
corpo com uma vida desconhecida que me empurra os órgãos e me rouba o ferro. Normal.

Nada contra a palavra normal. Dita com apreço e paciência, ela pode, de fato, até acalmar e fazer bem. O problema é a expressão de enfado dos obstetras. É a transparência com a qual nos demonstram tamanha preguiça em ver o mesmo filme de novo e de novo e de novo. “Ah, mais uma grávida estressada.” Não tem como ornar o nosso cérebro fritando e eles bocejando. “Ah, mais uma mulher surtada.”

Num dos momentos mais importantes e únicos da sua vida, precisar tanto das palavras de um especialista que já falou aquilo um milhão de vezes e, por vício de profissão (e falta de estudo de psicanálise), aprendeu a rotular as pessoas chega a ser desumano.

Eles já viram 7.675 ultrassons. Já fizeram 6.476 partos. Já responderam “normal” pra 9.598 mulheres. E eu com isso? E você com isso? 

Testei uma infinidade de obstetras, acompanhei o relato de uma infinidade de amigas que testaram uma infinidade de obstetras —e minha conclusão é que eu caguei se a vida deles anda chata ou monótona. Algo extraordinário não deixa de sê-lo apenas porque acontece com muita gente. 

Amigos obstetras, pelas suas mãos, novas e chorosas vidinhas chegam a este planeta. Novas e assustadas mães chegam a este mundo. Se isso lhes parece tedioso, ainda é tempo de virar bibliotecário.

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