O som ao redor da Flip

Há coisas que se perdem na tradução, mas de repente houve um momento de nitidez. Bem na hora em que os alto-falantes tocavam os primeiros versos de “Psycho Killer” na festa de uma editora famosa no centro de Paraty, as luzes se apagaram e a ruazinha de pedras virou um breu, como se a lua gigante no céu sugasse toda a energia dali num blecaute cósmico.

Durou pouco a escuridão, mas o som das conversas soltas no ar, fofocas e confabulações ecoando entre os muros baixinhos do casario colonial, ganhou um vulto maior. Os segredos se tornavam públicos, e amores e desavenças viravam roupa estendida no varal naqueles raros minutos de silêncio.

Cidade de Paraty na Flip-2017

Vir à festa da literatura nesse balneário parado no tempo e no meio do caminho entre as duas maiores metrópoles do país pode ser um exercício um tanto nostálgico. Vi rostos que não via há tempos, lembranças boas e más afloraram sem cerimônia. Tudo aqui parece tremer numa frequência estranha.

Mas essa tal Flip é um espetáculo estranho mesmo. Multidões abarrotam uma tenda no coração da cidade ou se sentam diante de um telão para ver escritores de carne e osso descarnar suas palavras, gente que fala do indizível e coisas afins.

Os sons de latinhas de cerveja abrindo aqui e ali engrossam a trilha sonora, transformando uma praça ainda cheia de bandeirinhas juninas numa espécie de boteco expandido noite adentro. E o povo bebendo diante das imagens de escritores famosos parece até inebriado pelas palavras que lançam ao vento.

Há ainda os que fogem do circo para se afogar em garrafas de vinho rosé ao longo de tardes infinitas nos quintais da cidade ou que lotaram barcos atracados na baía para ver um breve eclipse lunar. Mas tanto essa turma mais blasé quanto os fãs dos escritores parecem estar aqui pedindo contato com algo além, querendo ouvir até o português falado nas tendas como espantosa língua estrangeira.

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