O problema não é 1964, mas 1984

É inevitável associar ao livro “1984", clássico de George Orwell, o anúncio do ridículo ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, de que pretende mandar reescrever os livros didáticos para que contem que, em 1964, não houve um golpe e que, em seguida, não se instalou uma ditadura e, sim, “um regime de força".

Um pouco de memória: o protagonista do livro é Winston Smith, funcionário do Departamento de Documentação do Ministério da Verdade. Sua função é falsificar registros históricos, a fim de moldar o passado à luz dos interesses do presente.

É isso exatamente que se pretende fazer. Não cabe a mais leve dúvida de que, em 1964, houve um golpe. Tampouco cabe alegar que foi, na verdade, um contragolpe para evitar um suposto golpe comunista a ser desferido pelo presidente João Goulart.

Reinaldo Azevedo, que pode ser acusado de muita coisa, menos de ser marxista cultural, se antecipou a mim, na sua coluna desta sexta-feira (5), e destruiu essa segunda falsificação da história. Escreveu: “O governo que foi derrubado, ‘que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o país’, a que se refere o preâmbulo indecoroso do Ato Institucional nº 1, não dispunha de bala para dar um tiro. Conspiração de desarmados, por mais errados que sejam (e eram!), contra tanques é o que é: golpe dos tanques contra os desarmados. Não há mistério nisso."

Só vale acrescentar o desmentido a outra falsidade espalhada pelo bolsonarismo: não é verdade que o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, declarou vago o cargo de presidente porque Goulart havia deixado o país. Ele ainda estava no Rio Grande do Sul quando Mazzilli obedeceu aos militares e declarou o cargo vago.

Só falta agora que venha algum bolsonarista simpatizante de Pinochet dizer que não houve golpe no Chile em 1973 e que os militares só assumiram porque o presidente constitucional, Salvador Allende, havia se suicidado. É claro que o nosso Ministério da Verdade omitiria que Allende se matou durante o bombardeio do Palácio de la Moneda, sede do governo, pelos militares golpistas.

O chanceler Ernesto Araújo é outro adepto da falsificação da verdade, ao dizer que o nazismo é de esquerda.

Nem as maiores vítimas do nazismo compram essa idiotice, como se vê pelas declarações do Yad Vashem, o Museu do Holocausto, e de vários rabinos.

O que espanta, além das cenas explícitas de idiotia, é o fato de que se trata de uma perda total de tempo tentar reescrever a história. Digamos que os livros didáticos mudem “ditadura” por “regime de força". Reaparecerão os desaparecidos, ressuscitarão os mortos, serão devolvidos os mandatos cassados arbitrariamente, serão curadas as feridas deixadas pelas torturas, serão refeitas as eleições diretas para presidente, governadores e prefeitos de capitais, banidas pelo regime militar?

Da mesma forma, se o nazismo fosse oficialmente declarado de direita, não apagaria o inferno que ele gerou.

Se a intenção é demonstrar que a esquerda —e só a esquerda— é violenta, não precisa reescrever a história do nazismo. Basta apontar para a União Soviética.

Pode-se mudar o rótulo, mas o conteúdo continuará nefando. Ou, se você prefere algo escatológico, reescrever a história seria cair no velho ditado popular que diz que mudam as moscas, mas o resto (você sabe ao que me refiro) fica igual.
 

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