O nome das coisas e o reizinho mandão

As coisas devem ser chamadas pelo nome. Se você inventar novos nomes para uma coisa, pode se meter em apuros, pois provavelmente vai confundir as pessoas.

Aprendi essa lição aos oito anos de idade, lendo um clássico do pensamento brasileiro chamado "Marcelo, Marmelo, Martelo", de Ruth Rocha. Para quem não leu, trata-se da história de um garoto chamado Marcelo, que decide trocar os nomes das coisas por outros, que considera mais "apropriados", e logo se mete em confusões.

"Marcelo, Marmelo, Martelo", publicado em 1976, teve 70 edições e vendeu mais de 20 milhões de exemplares, mas talvez devesse ser lido por mais gente. No dia 21 de setembro, um computador vinculado à Polícia Militar do Estado de São Paulo foi usado para fazer alterações no artigo sobre o AI-5 (Ato Institucional Número 5) na Wikipédia.

"Ditadura militar" foi substituída por "regime militar", "golpe de estado" por "revolução" e "tortura" por "práticas de extração de informação". Uma semana depois, o general da reserva Aléssio Ribeiro Souto, em entrevista ao UOL, recusou-se a chamar o golpe de 1964 de golpe, dizendo que "quem declara que 1964 foi um golpe é o mesmo que declara que a Dilma (Rousseff) foi vítima de um golpe" (e ainda afirmou que "os livros que não trazem a verdade sobre o regime de 1964 têm que ser eliminados").

Por fim, no último dia 1º, o presidente do Supremo Tribunal Federal, em um evento na Faculdade de Direito da USP, declarou o seguinte: "Eu não me refiro mais a golpe nem a revolução, eu me refiro a movimento de 1964."

Na história de Ruth Rocha, quando a casinha do cachorro pega fogo, Marcelo sai em busca de ajuda, gritando: "Embrasou a moradeira do latildo!" Ninguém entende o que ele diz e a casinha acaba destruída no incêndio. Estamos sujeitos a problemas semelhantes quando não chamamos as coisas pelo nome. 
Trinta anos atrás, Ulysses Guimarães pronunciava seu célebre discurso na Assembleia Constituinte, em que dizia: "Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo." Todos entendiam claramente do que ele estava falando.

Imaginem se, em vez disso, Ulysses tivesse dito: "Temos ódio ao movimento. Ódio e nojo". Ou imaginem multidões de brasileiros nas ruas, gritando "Abaixo o movimento!".

Parece uma briguinha entre bandas de rock, quando na verdade estamos falando de um regime que cassou os direitos políticos de gente como Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e o pai de João Doria Jr.; que torturou e matou gente como Rubens Paiva e Vladimir Herzog, que perseguiu e levou ao exílio gente como José Serra, Fernando Henrique Cardoso, Gilberto Gil e Caetano Veloso. 

Sim, é fundamental chamar as coisas pelo nome. Foi por isso que Otavio Frias Filho teve a dignidade de escrever, em março de 2009, este mea culpa quando esta Folha chamou o regime militar de ditabranda: "O uso da expressão 'ditabranda' em editorial de 17 de fevereiro passado foi um erro. O termo tem uma conotação leviana que não se presta à gravidade do assunto. Todas as ditaduras são igualmente abomináveis."

Sim, todas as ditaduras são igualmente abomináveis, o que me faz lembrar de outro livro de Ruth Rocha. "O Reizinho Mandão", publicado em 1978, conta a história de um reizinho mimado que mandava todo mundo calar a boca, até que as pessoas desaprenderam a falar.

O reizinho ficou triste ao se dar conta de que não tinha mais ninguém com quem conversar, e foi pedir conselhos a um velho sábio que vivia no reino vizinho. O velho não perdoou: "Pois é. Vai mandando calar a boca, não é? Depois aguenta! É isso que dá."

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