'Não vou desistir de ter heróis', diz Jerry Seinfeld

De certa maneira, o mundo de Jerry Seinfeld é o mesmo que sempre foi. Ele continua a ser um humorista singularmente reconhecível, astro e cocriador da série que levava seu sobrenome como título, e apresentador de “Comedians in Cars Getting Coffee”, programa de entrevistas da Netflix.

Aos 64 anos, ainda faz dezenas de apresentações e, na sexta (2), anunciou uma nova temporada no Beacon Theater, de Nova York, para 2019.

Mas o mundo da comédia que Seinfeld habita vive um período tumultuado. Alguns humoristas se sentem inseguros quanto ao que podem e não podem dizer em suas apresentações, e diversos astros caíram em desgraça por conta de escândalos que eles mesmos provocaram.

Bill Cosby, no passado um dos heróis de Seinfeld, foi condenado por agressão sexual em abril e sentenciado a prisão em setembro. Roseanne Barr, cuja série foi ressuscitada pela rede de TV ABC, teve seu programa cancelado em maio depois que ela tuitou uma mensagem racista. Louis C.K., que no ano passado admitiu diversas impropriedades sexuais, voltou a se apresentar em casas de comédia, o que gerou protestos.

São questões complicadas e desconfortáveis que Seinfeld sabe que não pode evitar, dada sua posição no ramo. Na quarta (31), em um almoço no Upper West Side de Manhattan, ele falou sobre sua abordagem quanto ao humor stand-up nesse período de ansiedade e humoristas que passaram dos limites. 

 

Você fez temporadas de apresentações no Beacon Theater em 2016 e 2017, mas não em 2018. Por que decidiu retornar em 2019? 

Quando decidi experimentar, adorei me apresentar lá. Em seguida, começou a parecer que tínhamos feito apresentações demais. Mas fiquei com saudade. É minha visão do que vejo como experiência ideal de stand-up, ou seja, um teatro velho e bonito na cidade em que o humorista mora e em um bairro que ele conhece a fundo. 
  
Existe muita tensão no ramo do humor, agora, por diversas razões. 

Com certeza. Um dia dia desses eu perguntei para a plateia por que eles estavam lá. “Acho que vocês gostam de ver alguém sofrer.” 
 
Você sente essa ansiedade, então? 

Com certeza. Com Cosby, Louis e Roseanne. A coisa é que, para um humorista, ouvir “nós te odiamos, saia do palco” é a experiência normal. Todo humorista tem isso como parte de sua vida. Ou você tem a casca grossa necessária ou não tem.
 
Há pessoas que foram punidas por seu comportamento fora do palco. No caso das pessoas que sentem ter sido penalizadas por coisas que disseram no palco, elas têm direito a uma esfera de proteção em suas apresentações? 

Não, não concordo com isso. Porque a audiência filtra automaticamente o que você está dizendo. Você faz ideia de quantas pessoas estavam no mercado quando comecei? Comecei com centenas de outros sujeitos e mulheres, e 99% deles se foram. Alguns eram ótimos. Por que sumiram? Por todos os motivos que você possa imaginar. Todas as fissuras em sua personalidade vão ser testadas —vamos ver se é possível fazer disso uma ferida aberta. É o que acontece no stand-up.

Como você acha que conseguiu evitar esses percalços?  

Eu tive muita sorte. Na década de 1970, estava cercado de cocaína e alcoolismo. Mas essas coisas não me interessavam, nunca as vi. Jamais vi cocaína em minha vida. Falando sério. Sabia que estava rolando, mas meu caminho era outro. Pensava comigo mesmo que aquilo não era para mim. Creio que tive sorte por sentir aversão natural por coisas que achava tóxicas. E isso cobre um vasto território. Vasto.
 
E agora ter uma família ajuda? 

Ajuda. Quando a vida de mais alguém depende de você manter o controle, é muito mais fácil manter o controle.
 
Você tem a impressão de que precisa ser mais cuidadoso com o que diz nas suas apresentações? 

Não. Eu não costumo ir a a áreas que causam problemas. Tenho um bit sobre o #MeToo e as garotas da meteorologia. “Acho que as meninas da meteorologia precisam se acalmar um pouco, na TV. Estamos tentando nos adaptar a novas regras que acabam de ser anunciadas, a situação é muito fluida. Vocês poderiam ajudar um pouco —olha essas roupas malucas de coquetel que vocês colocam para aparecer na TV às 9h30.”
 
E essa fala é aprovada pelas audiências? 

Sim, é. Mas se você comete um erro, e todos nós erramos, as pessoas mostram, e você deixa aquilo de lado e não repete mais aquela linha. Ou, se quiser repetir, repete e pronto. O aspecto de rodeio do humor stand-up era o que mais me fazia falta quando comecei a fazer a série. Nos demais reinos do show business, você é mimado demais. E o stand-up é o oposto de ser mimado. Você é jogado no meio de uma turba.
 
Você acha que os humoristas aprenderam as lições erradas na era precedente e saíram dela acreditando que podiam fazer o que quisessem? 

Ninguém pode fazer o que quiser. Você faz o que funciona —se quer ter uma carreira. O que faço no palco é aquilo que minhas 300 audiências anteriores decidiram que funciona. 

Você fica feliz por sua musa cômica não tê-lo levado por um caminho mais político?

Gosto de seguir meus próprios rumos. Se eu me achasse capaz de fazer nessa área alguma coisa que o humorista médio não consegue... mas assisto a Bill Maher ou Seth Meyers e penso que não me sairia bem com aquilo; já eles são ótimos. No entanto, eu consigo falar sobre passas de maneiras que outras pessoas não conseguem.
 
É cedo demais para Louis C.K. voltar aos palcos? 

Não. As pessoas objetam ao modo pelo qual ele o fez. Algumas pessoas não queriam que ele se apresentasse e pronto. Conhecemos a história. A pessoa faz algo errado. A pessoa é humilhada. Ela sofre, e queremos que sofra. Adoramos o tropeço, a queda e o estrondo da queda. E adoramos vê-la rastejando de volta. A súplica. Você vai suplicar? Por quanto tempo você vai suplicar? Acho que as pessoas imaginaram que era isso que teriam com Louie —que ele lhes devia isso. Nós, o tribunal da opinião pública, decidimos que, se ele quer voltar, precisa exibir muita dor. E ele lhes negou isso.

Você não acha que ele deveria ficar longe dos palcos, neste momento? 

Não posso dizer o que ele deveria fazer. Cada um faz o que quer. Se ele errar, vai sofrer. E é assunto dele.

Ou seja, você não tem qualquer objeção a que ele volte? 

Se houver um crime ali, e a lei se envolver, é para isso que serve a lei. Já as leis da comédia nós inventamos no meio do caminho. Às vezes, a vida da pessoa é parte do entretenimento. Alguém disse que essa é a primeira vez em que um cara se comporta mal, e as pessoas querem saber como vai o acusado, não como vai a vítima. 

Antes das revelações sobre seus crimes, Bill Cosby era uma pessoa que você admirava? 

Totalmente. Mas quando uma coisa como essa acontece, é como um cofre caindo pela janela —grande demais para que possamos ignorar. O estrondo da queda é forte demais. O que acho que seja novidade para as pessoas —no caso de Roseanne e Cosby— é a queda súbita e tão definitiva. Tanto trabalho, e tudo se vai tão rápido. A velocidade do processo nos incomoda, porque é novo para nós. Sobre Roseanne, eu diria que jamais vi algo de tão ruim acontecer por conta de uma mensagem dedilhada em uma tela. Toda uma carreira: fim. Esse é um dos aspectos da inquietação que sentimos, o de acordar de repente e alguém dizer “ah, é: o Lincoln Memorial não existe mais”. “O quê?” “Sim, foi derrubado. Descobriram que Lincoln traía a mulher e derrubaram a coisa toda.” “Meu Deus, acho que vou ter de me ajustar a isso. Eu gostava do Lincoln Memorial.”

Houve exemplos prévios, menos difundidos, de comportamento ofensivo por parte dela na mídia social. A demissão de Roseanne lhe pareceu súbita? 

Claro que sim. Não injustificada, mas a sensação foi essa, a de que aconteceu de repente. Normalmente, você ouve um estalido, vê uma rachadura —alguém tenta consertar. Talvez possamos escorar a coisa aqui, talvez um andaime para esconder o dano. Esse é o modo mais típico.

No caso de Cosby, você teve de reavaliar os motivos para que o admirasse? 

Obviamente eu nada sabia (sobre seus crimes). Se repenso minhas idolatrias? Não vou desistir de ter heróis. Sei que isso pode causar problemas, mas sou uma pessoa esperançosa. Gosto de acreditar nas pessoas. Eu disse a Ellen DeGeneres que os seres humanos têm relacionamentos abusivos uns com os outros. 

Um dos especiais de stand-up mais bem recebidos do ano é “Nanette”, de Hannah Gadsby, mas ele também polarizou os espectadores. Você assistiu? 

Sim, amei. Amei. Ela fez um lindo trabalho, e a maneira como o entrelaçou com a história da arte que estudou na escola tornou tudo ainda mais fascinante e fantástico.

É surpreendente que o espetáculo tenha gerado um debate sobre o que é stand-up versus o que é “one-person show”, e se o especial pode ou não ser definido como comédia? 

Mas não é ótimo que ela tenha distendido o formato do stand-up para abarcar esse lado? E o quanto isso vale, para outras pessoas que passam ou passaram pelo que ela passou? Ver uma pessoa que prosperou apesar daquilo. Estamos aprendendo como lidar com a coisa no meio do caminho. E há algo de muito estimulante e empoderador nisso. Na verdade, não sabemos quais são as regras. Estamos tentando defini-las, enquanto outras pessoas criam regras e querem que todo mundo as siga.

Tradução de Paulo Migliacci 

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