Na falta de coisa melhor, Deus acima de todos
A direita nos Estados Unidos de onde escrevo nesta semana já se movimenta para desqualificar o democrata com maiores chances até aqui de confrontar Donald Trump na eleição do ano que vem.
Mais uma vez, usa a religião e o moralismo para afastar a atenção do eleitor dos problemas reais para o campo da especulação e da fantasia.
Ex-vice de Barack Obama, Joe Biden lidera pesquisas pela indicação democrata. Tem como ativo ser homem e branco, algo relevante nos EUA, e ter trabalhado com Obama —o que lhe confere simpatia entre negros e hispânicos (13% e 18% da população, respectivamente).
Ao indicar que anunciará em breve sua pré-candidatura, duas mulheres apareceram acusando-o de conduta inapropriada. Uma disse que Biden roçou seu nariz com o dela em 2009; outra, que ele a beijou na parte de trás da cabeça, em 2014. Os dois casos ocorreram diante de outras pessoas.
Casado com a mesma mulher desde 1977 e aos 76 anos, Biden nega conotação sexual e diz ter sido sempre uma pessoa afetuosa. Outras mulheres saíram em defesa do político.
Mas os ataques mais pesados, sobretudo de sites e canais conservadores como Fox News, concentram-se em declarações razoáveis de Biden sobre o aborto: “Minha religião me define e tenho sido um católico praticante a vida inteira. Sobre o aborto, aceito pessoalmente a posição da igreja de que a vida começa na concepção. Mas não temos o direito de dizer às mulheres que não podem controlar seus corpos”.
O uso hipócrita da religião na política não é invenção dos republicanos nos EUA, de líderes que agora vão em romaria a Jerusalém ou de bolsonaristas no Brasil. Em 1985, em um último debate entre candidatos à Prefeitura de São Paulo, o então senador Fernando Henrique Cardoso enrolou-se numa resposta sobre Deus, foi tachado de ateu e acabou perdendo para Jânio Quadros.
Mas é agora em países onde as pessoas se sentem cada vez mais vulneráveis economicamente que populistas sem programas consistentes conquistam cada vez mais o sentimento difuso de desproteção geral dos seres humanos que está na base da crença religiosa.
Ao apelar para a fé e converter esse desamparo irremediável e inconsciente dos eleitores em votos, os populistas da religião acabam eximidos de maiores elaborações e propostas.
Já o eleitor fica na cômoda situação de não precisar se responsabilizar por nada. Segura na mão de Deus e vai.