Memórias da milícia

Se a longa história da palavra tivesse a duração de uma partida de futebol, só aos 43 minutos do segundo tempo "milícia" ganharia o sentido que inunda o noticiário policial e se infiltra no político.

Ao desembarcar no português do século 14, tinha a acepção que herdara do latim "militia": campanha de guerra, serviço militar. Logo surgiria uma distinção entre miliciano e militar, uma rusga no seio da família do patriarca latino "miles" (soldado).

A distinção era semântica e de classe. Formada por cidadãos informalmente armados, não por profissionais, às vezes nem dinheiro para comprar garruchas a milícia tinha. Ficava bem abaixo dos militares na pirâmide social.

Consta que o sentido de força auxiliar de segurança surgiu no século 17 no francês "milice": "tropa de cidadãos recrutados nas comunidades para reforçar o exército regular". Recrutados por quem?

Pelo Estado, claro. As milícias tiveram na Revolução Francesa e nas guerras de independência do Novo Mundo um viés libertário, mas o Estado sempre deu um jeito de se apropriar de seu ardor.

Preservada em formol, aquela rebeldia original sustenta o direito às armas consagrado na Segunda Emenda à Constituição americana --relíquia do tempo do mosquetão na era do AR-15.

Findos os tumultos de outrora, a história tendeu ao estabelecimento de Estados nacionais garantidores de ordem interna. É verdade que às vezes se dá o oposto, mas desde então, na maioria das ocasiões, o cidadão ocidental médio tem feito escolhas políticas que acredita capazes de lhe garantir paz para tocar a vida sem precisar matar uma mosca.

Assim, domesticadas no século 19 como guardas nacionais e forças auxiliares, as milícias tiveram em diversos países uma carreira oficial, ainda que subalterna. No caso brasileiro, o papel de polícia constava entre suas funções --na manutenção da "ordem pública" e na captura de escravos fugidos, por exemplo.

Quando, em 1918, o sociólogo Max Weber definiu o Estado como o detentor do monopólio da violência, as milícias já vinham sendo descartadas como elementos de política de segurança em todo o mundo.

Transmutaram-se em burocráticas forças policiais, do lado civil, ou foram extintas, do lado militar. Se a Segunda Emenda preserva o espírito miliciano setecentista, seu colega brasileiro do século 19 mora no título do clássico "Memórias de um Sargento de Milícias" (1854), de Manuel Antônio de Almeida.

Órfã do Estado, a milícia voltou no século 20 a velhas zonas de voluntarismo e ilegalidade. Às vezes em sentido figurado, passou a designar grupos de militantes de causas variadas.

Essa é a história geral. A milícia brasileira do século 21 é diferente, específica. Diz o dicionário "Houaiss": "grupo armado de pessoas, geralmente com formação militar, paramilitar ou policial, que atua à margem da lei em algumas comunidades carentes, pretensamente para combater o crime".

O dicionário informa ainda que a acepção surgiu em torno de 2007 (há registro dela dois anos antes em reportagem de "O Globo") e que se trata de um uso carioca (hoje nacionalizado).

Como a diferença faz fronteira com a semelhança, as milícias de hoje ecoam as de antigamente na função de polícia, na opressão aos descendentes daqueles mesmos escravos e no apoio discreto --ou nem tanto-- recebido de um Estado degradado que acha boa ideia abrir franquias daquilo que, como ensinou Weber, é sua própria razão de ser.

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