Lula como fabulador

Há narrativas que unem um país. E narrativas que o dividem. Lula, como grande storyteller, um grande fabulador,  ajudou a construir um enredo que dividiu o Brasil.

A eleição no Brasil de hoje é refém de dois sentimentos: vitimismo e saudosismo.

Quem é mais vítima: o preso ou o esfaqueado? Do que você tem saudades: do governo militar ou do governo Lula?
 
Lula é protagonista desse “filme”. Uns acham que ele é um Grande Herói. Outros um Grande Vilão. Todos concordam que ele é grande.

Como o país pode se dividir em torno de um só homem? Isso aconteceu pois ainda estamos presos a um modelo dramático maniqueísta e inspirado no sebastianismo: o mito típico da cultura luso-brasileira e que inspirou movimentos como Canudos.

Na fábula de Lula/Sebastião existe um passado ideal (os anos Lula), um momento atual (o ataque dos bárbaros) e um futuro messiânico: a volta grandiosa do herói. Temer, com sua imagem de Bento Carneiro, o vampiro brasileiro, foi o vilão ideal.

O sebastianismo é o mito do rei desaparecido que um dia voltará. Antes, ele sumira em uma batalha; agora, está preso em sua cela. O PT não é um partido que lança candidatos. É a tropa do rei Encoberto.

Como diz sua campanha, em tons que dariam inveja a qualquer dom Sebastião: o Brasil voltará a ser feliz.
 
Um grande storyteller não controla tudo. Lula, obviamente, não controlou a sentença de Moro. Mas controlou a forma como ele lidou com ela. Um fabulador não é apenas quem conta uma boa história passada. É quem ressignifica o passado para alcançar uma meta futura.

Para vencer esta eleição, Lula precisava transferir votos rapidamente para um candidato desconhecido. Para isso, precisava de eleitores fiéis, de uma lealdade quase transcendente. E como ele conseguiu isso?  Quem conhece histórias sabe que nada melhor para fidelizar um fã “fiel” do que ver seu “herói” sendo vítima. Foi assim que Lula optou por viver um calvário público.

Essa construção começou com o impeachment de Dilma. Um grande fabulador sabe a hora de perder com honra, escolhe o momento para ser a “vítima”.  Se Dilma fosse presidente até agora, nem Lula seria eleito, quanto mais Haddad.  Mas a derrota no golpe fez de Lula uma vítima e o liberou da responsabilidade pela crise.

O mesmo com a prisão. Lula poderia se refugiar em uma embaixada, mostrando que acreditava que é mesmo vítima de um golpe judiciário e fortalecendo a luta. Mas não. Optou por se deixar prender. Será que ele sabia que aquele era o momento de viver seu calvário? O fato é que deu certo.

Para representá-lo, Lula ungiu um jovem cavaleiro, “o petista que mais lembra o PSBD",  representando a união dos Sete Reinos da Game of Tupinquins (PT, Renan, Sarney etc..) contra a invasão bárbara do povo fascista, inimigo escolhido a dedo. Agora não é mais esquerda x direita. É civilização x barbárie!

Foi assim que Lula conseguiu sequestrar para si todas as pautas sociais libertadoras e se colocou como única alternativa para a civilização. Nessa narrativa, se você não é petista, você é fascista. Não existe meio-termo.

Lula mostrou que tem o poder de dominar a narrativa e tornou o imenso tempo de TV de Alckmin em um latifúndio improdutivo. Nos dias de hoje, mais importante que vencer o debate é ser protagonista dele. Se você estiver em um dos extremos, sempre vencerá.  E isso que tem ameaçado verdadeiramente a civilização: os extremos!

Lula não é o único responsável por tudo isso. A tentativa de demonizá-lo o ajudou. Se você inventa que alguém é demônio, quem gosta dele acreditará que ele é Deus. E vice-versa. Espero que, sabendo disso, os comunicadores que lutam por uma sociedade democrática aprendam a criar narrativas menos maniqueístas. Baseadas num novo futuro imaginado e não na volta a um passado idealizado. Com identidades baseadas "no que você quer ser", e não em "como você foi vítima". Ou inventamos novos modelos narrativos ou ficaremos presos a essa polarização que pode nos conduzir ao fascismo.

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