Irmãos Coen dão atualidade ao faroeste evidenciando suas relações de força

A primeira impressão não é boa: a primeira das histórias de “The Ballad of Buster Scruggs” (como de hábito, Netflix apresenta o filme com o título inglês), justamente a de Buster Scruggs, remete a um Oeste tradicional (pelo cowboy músico), porém paródico. Lá estão o estilo, as imagens afetadas, certo tipo de humor cínico bem próprio aos filmes dos irmãos Coen.

A seguir somos levados a uma versão mais Sergio Leone do Oeste: o assalto a banco, a gado e enforcamentos, a secura da paisagem... Mas aí o trabalho, seja sobre as cores, seja sobre construção de tipos, sobre a remissão a outros velhos oestes, remete novamente a esse estilismo dos Coen que não raro se sobressai pelo excesso.

No episódio do minerador somos conduzidos a uma substância humana mais interessante, com quê do “Ouro e Maldição” de Stroheim, talvez: um velho minerador cava obstinadamente em torno de um riacho, certo de que ali encontrará seu bolsão de ouro. Seu rosto, porém, e suas atitudes, nos levam a acreditar que essa busca vem de muito tempo. Há certa beleza nesse episódio sobre a cobiça em oposição à natureza, um tanto prejudicado, porém, pela intervenção excessiva nas cores.

O primeiro momento capaz de, de fato, chamar a atenção é a montagem do cenário para um espetáculo itinerante, o episódio com Liam Neesom. Aqui, o filme nos leva mais para o registro do terror do que para o do faroeste. Pode ser irritante, conforme o gosto, mas nada desinteressante, em todo caso.

À medida que caminhamos para o final, um Oeste mais realista (ou seja: mais conforme às convenções) se impõe. Tanto a fotografia deixa de causar impressão à parte como, no episódio da caravana para o Oregon, os personagens e as situações são bem desenvolvidas.

Mais surpreendente, o episódio final parece bem uma adaptação ao Velho Oeste de “A Carruagem Fantasma”, de Victor Sjostrom, tanto quanto a “No Tempo das Diligências”, de John Ford. Trata-se, então, de um desses belos momentos em que o cinema surge, legitimamente, do próprio cinema.

E nesse episódio talvez esteja o mais belo momento de roteiro (roteiro que, aliás, é um ponto forte do conjunto do filme), pois a conversa dos personagens nos leva de um lado a outro, de uma questão a outra, das várias realidades vividas por cada personagem da diligência, até o final abertamente fantástico (como gênero).

Esse retorno ao Oeste se mostra, quando chegamos ao final, bem mais interessante do que a soma de suas partes. Se o gênero estava morto, os Coen conseguem introduzir-lhe uma inesperada atualidade: é de relações de força que se trata, do começo ao fim. Os fortes contra os fracos, os que impõem o destino contra os que o sofrem, os que matam contra os que morrem.

Em resumidas contas, trata-se de reencontrar um Oeste vivo ao tratar da sociedade pós-industrial, ou da globalização, ou do neoliberalismo (fique à vontade para escolher), ou de todos eles. Não é de Velho Oeste que se costumava falar? Bem, aqui estamos no coração da selvageria. E os Coen se saem do desafio infinitamente melhor que o Tarantino de “Os Oito Odiados”.

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