Insatisfeitos, britânicos fazem Marcha para Sair e percorrem 400 km em defesa do brexit
À distância, os mochilões nas costas e a bandeira na cabeceira da fila indiana fazem pensar em um grupo de escoteiros.
O zoom seguinte revela um mar de cabeças brancas, sugerindo talvez uma legião de peregrinos. Já o ritmo de caminhada, sincopado, lembra o de um pelotão sênior de marcha atlética.
Mas não é a proteção da natureza, nem a fé, nem o esporte o que congrega cerca de 80 pessoas, no primeiro dia da primavera, à margem de uma estrada sem acostamento do norte da Inglaterra.
Eles só têm pernas para o brexit, a cada vez mais bizantina saída do Reino Unido da União Europeia (UE), depois de 46 anos de filiação.
São todos participantes (fixos ou apenas por um dia) da Marcha para Sair (March to Leave), que busca aumentar a pressão sobre o governo Theresa May e o Parlamento britânico para que agilizem o processo de retirada.
Na quinta-feira (21), o sexto dos 14 dias do périplo, a turma recebeu uma notícia pouco alvissareira (para eles, em todo caso): a UE concordou em adiar ao menos até 12 de abril o Dia D do brexit, dando a May mais duas semanas para resolver o imbróglio da aprovação do “acordo de divórcio” pelos deputados.
Iniciada na cidade litorânea de Sunderland (nordeste da Inglaterra), a romaria deve culminar na frente do Parlamento, em Londres, na data que marcaria o adeus british à Europa: 29 de março.
A reviravolta da última semana é feito brisa a soprar sobre as bandeiras do grupo.
Ao lado delas, pululam cartazes com dizeres como “parem de trair o brexit”, “salvem o brexit” e “sair significa sair”.
No plebiscito de junho de 2016 que disparou o processo de separação, 52% dos eleitores votaram “leave” (sair), contra 48% de “remain” (permanecer).
O grupo vai percorrer 270 milhas (435 quilômetros, ou cerca de 31 km por dia) em uma região bastante atingida pela desindustrialização nas últimas décadas e majoritariamente partidária do “leave”.
Uma jornada típica inclui de 6 a 8 horas de caminhada, com parada para almoço.
Quem vai se juntar ao cortejo por dois dias ou mais recebeu, mediante pagamento de 50 libras (R$ 260), um kit “leave”, com camiseta azul ou branca estampada com o nome do evento e plaquinha pró-brexit.
A organização fornece a esses assíduos hospedagem e alimentação.
Um ônibus panorâmico que leva a inscrição “acredite na Grã-Bretanha” em letras garrafais conduz os participantes a cada manhã ao novo ponto de partida –geralmente, um estacionamento— e os traslada, ao fim das atividades, para o hotel da vez.
Além disso, uma carreta equipada com banheiros químicos segue o périplo e, como numa maratona, aparece a cada tantos quilômetros uma boa alma para oferecer água e bolinhos aos brexiteiros de estômago vazio.
Monitores e seguranças, por sua vez, fazem um cordão de isolamento.
O aposentado William Rose, 74, integrou-se pela primeira vez à andança na quarta (20).
“Estou com raiva, de saco cheio”, dispara, de saída.
“Theresa May deixou a União Europeia definir a agenda, e o que eles queriam era nos aplicar um castigo. O acordo que ela fechou é pior do que se tivéssemos decidido ficar.”
Para ele, a UE deseja criar “os Estados Unidos da Europa, uma federação com uma só bandeira, uma só moeda, um só hino e agora, um só Exército [ideia defendida pelo presidente francês Emmanuel Macron, entre outros]”.
Enrolada em uma bandeira do Reino Unido, Gaynor Haycock, 56, pensa parecido.
“Não somos contra os europeus, adoramos eles. O problema é a elite política, o establishment: Donald Tusk [presidente do Conselho Europeu], Michel Barnier [negociador-chefe do brexit pelo lado europeu], Jean-Claude Juncker [nº 1 da Comissão Europeia], Angela Merkel [chanceler da Alemanha].”
Na visão dela, esses líderes “querem mandar em todo mundo, querem forçar os membros da UE a abrir mão de sua soberania”.
“Acontece que cada um tem sua cultura: a Espanha, uma cerâmica linda, a Alemanha, salsichas especiais e cerveja, a França, champanhe. Quando você vai para lá, quer se sentir em outro lugar, no exterior, não na sua casa”, diz, enquanto motoristas passam pelo grupo buzinando e batendo palmas, enquanto ciclistas gritam “muito bem!” e “nos vemos no dia 29”.
Haycock diz que a UE destruiu tudo o que era tipicamente inglês em prol de importações (“devolveram nossa couve-flor, mandaram nossas fábricas de chocolate para a Polônia, abriram nossas águas para barcos pesqueiros espanhóis e franceses”).
“Estou fazendo isso por meus filhos e netos. Temos que lutar pela liberdade, como nossos antepassados”, arremata, com a voz embargada.
A mesma “responsabilidade geracional” move o artesão aposentado John Coyle, 65. “Como posso querer explicar aos meus filhos que democracia é a vontade popular se deixar isso [o vai-não vai do brexit] acontecer?”.
Na interpretação dele, o que Londres subscreveu em 1973 foi um projeto de livre-comércio, “tanto que o grupo se chamava Comunidade Econômica Europeia”, não um alinhamento ou integração de outra natureza.
Coyle afirma que estará com a marcha no dia 29, na frente do Parlamento, para “testemunhar a traição”.
Mas talvez as palavras de William Rose, nosso primeiro entrevistado, consigam acalmá-lo.
“No fim, vamos ganhar. Pode ser não ser agora, pode ser que voltemos à casa zero. Mas vamos ganhar.”