Hitler usou socialismo para atrair massas ao nazismo, mas meta era destruir marxismo

O erro do presidente Jair Bolsonaro em classificar o nazismo como um movimento de esquerda tem raízes históricas. O próprio Adolf Hitler, em seu manifesto com toques autobiográficos “Minha Luta”, faz troça com eventuais confusões entre os nacional-socialistas e os comunistas.

A ambiguidade foi alimentada não só pelo intenso uso do vermelho na identidade visual do NSDAP (Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães), mas também por um vocabulário próximo ao da militância comunista, com críticas à burguesia e ao capitalismo, além de admitir a existência de uma luta de classes.

 

“Até a cor vermelha dos nossos pôsteres atraiu eles [militantes comunistas] para nossos salões de encontro. A burguesia comum estava bastante chocada por nós, também, termos recorrido ao vermelho dos bolcheviques, e isso era considerado um assunto muito ambíguo”, escreve o ditador alemão (1889-1945) no livro publicado em 1925.

Continua Hitler: “Os espíritos nacionais alemães discretamente continuaram a mencionar a suspeita de que nós [nazistas] éramos basicamente uma variante do marxismo, talvez apenas marxistas disfarçados ou socialistas melhores”.

“Escolhemos a cor vermelha dos nossos pôsteres após cuidadosa consideração, dessa forma provocando a esquerda, causando indignação e tentando-os a vir a nossos encontros”, afirma o líder nazista no livro, que vendeu milhões de cópias depois de sua ascensão ao poder, em 1933.

“Socialismo era um conceito de esquerda naquela época, mas ao mesmo tempo, estava na moda. Hitler o usou para dar ao seu partido a energia de um movimento popular”, lembra o historiador Daniel Schönpflug, da Universidade Livre de Berlim.

A ideia era conquistar grupos socialistas, fortes naquela época, para um programa nacionalista, segundo a pesquisadora Silvia Bittencourt, autora de “A Cozinha Venenosa” (Três Estrelas), no qual analisa a cobertura dos primeiros anos do movimento nazista feita pelo jornal Münchener Post, de Munique.

“Os jornais de esquerda, como o Post, até cobravam de Hitler uma postura mais socialista, voltada para os trabalhadores, lembrando o nome do partido. Mas estava claro que o nome era mais ‘pro forma’ e que a agremiação estava mais interessada no nacional do que no socialista.”

Um episódio é revelador dos efeitos dessa ambiguidade —e mostra o eleitorado que Hitler ambicionava conquistar.

Entre os 25 pontos do programa do Partido Nazista, apresentado em 1920, o de número 17 deixou inquietos os grandes empresários que ainda relutavam em aderir ao movimento do orador das cervejarias de Munique.

“Demandamos uma reforma agrária adequada aos nossos requerimentos nacionais, a aprovação de uma lei para a expropriação da terra com propósitos comunais sem compensação.”

Na campanha eleitoral de 1928, Hitler foi obrigado a esclarecer este ponto: “Devido às interpretações mentirosas por parte de nossos oponentes sobre o Ponto 17 do programa do NSDAP, a seguinte explicação se faz necessária: Sendo o NSDAP fundamentalmente baseado no princípio da propriedade privada, é óbvio que a expressão ‘expropriação sem compensação’ se refere meramente à criação de possíveis meios legais de confisco de terras adquiridas ilegalmente ou não administradas de acordo com o bem-estar nacional. É, assim sendo, dirigida a empresas de judeus que especulam com a terra”.

Como aponta o historiador britânico Ian Kershaw na biografia “Hitler” (Companhia das Letras), o ditador nazista sabia que a burguesia alemã, por si só, em meio ao caos político-social em que o país estava mergulhado nos anos 1920, não conseguiria derrotar a ameaça comunista.

Para tal, na cabeça de Hitler, era preciso conquistar as massas. Isso implicava em “reconhecer suas preocupações sociais. Mas, caso a plateia julgasse que isso era contrabando marxista, Hitler estava pronto para tranquilizá-la imediatamente: a legislação social exigia ‘a promoção do bem-estar do indivíduo numa estrutura que garantisse a manutenção de uma economia independente’”, escreve Kershaw.

Apesar de brincar com essa ambiguidade no decorrer de “Minha Luta”, Hitler é claro ao dizer o que pensa sobre o marxismo: “Nos anos 1913 e 1914, eu, pela primeira vez, em vários círculos que hoje apoiam fielmente o movimento nacional-socialista, expressei a convicção de que a questão do futuro da nação alemã era a questão de destruir o marxismo”.

Destruir, aniquilar, extirpar são os verbos preferidos por Hitler para descrever qual deveria ser o futuro da teoria que Karl Marx e Friedrich Engels botaram de pé no século 19.

Convém lembrar que o marxismo está na raiz dos programas de inúmeros partidos de esquerda e centro-esquerda, em maior ou menor grau, desde o fim do século 19.

Ao pedir voto na campanha eleitoral do início de 1933, Hitler afirma: “Os partidos do marxismo e aqueles que os acompanham tiveram 14 anos para ver o que poderiam fazer. O resultado é um monte de ruínas. Agora, povo alemão, deem-nos quatro anos e depois nos julguem e sentenciem”. Não por acaso, o slogan do NSDAP naquela campanha foi “Ataque ao marxismo”.

Em discurso a líderes da indústria automobilística, o recém-empossado chanceler do Reich é categórico: “Jamais me afastarei da tarefa de erradicar da Alemanha o marxismo e seus efeitos secundários”.

E a retórica não era nova. Em um texto datado de 1922, Hitler escreve que “uma vitória da ideia marxista significa o extermínio completo dos oponentes. A bolchevização da Alemanha significa a aniquilação completa de toda a cultura ocidental cristã”.

Foi a mesma defesa da cultura ocidental cristã que permitiu uma aliança com partidos conservadores de direita e centro-direita para a formação do primeiro gabinete de Hitler no governo, em 1933.

Um dos primeiros atos dessa administração foi banir o KPD (Partido Comunista Alemão). No ano seguinte, todos os outros partidos, com exceção do NSDAP, foram extintos.

Analisando-se o que Hitler escreveu e declarou, e considerando o Führer a personificação do Partido Nazista —de forma que um não pode ser compreendido sem o outro— é impensável afirmar que o nazismo era de esquerda, pois o objetivo confesso do NSDAP durante seus 25 anos de existência foi a destruição das teorias que constituíam a raiz programática dos partidos de esquerda e centro-esquerda.

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