Guerra imaginada na peça 'Dezembro' espelha a América Latina da atualidade

Numa cena de “Dezembro”, peça do dramaturgo chileno Guillermo Calderón sobre uma guerra fictícia entre países sul-americanos, um dos personagens diz que, naquela situação, “é como se o mundo tivesse acabado e as pessoas precisassem de um profeta”. E logo complementa: “Eu me sinto profeta.”

Faz 11 anos que Calderón escreveu o texto, e há uma década o diretor Diego Fortes (de “O Grande Sucesso” e “Molière”) quer montá-lo no Brasil. Mas, com o passar do tempo, os escritos foram refletindo cada vez mais a realidade, “de uma forma assustadora”, diz o encenador, que agora estreia no Festival de Teatro de Curitiba a sua versão.

O chileno, diz Fortes, escreveu o espetáculo quando o mundo vivia um momento menos conturbado, antes da recente polarização política e da ascensão conservadora, quando surgem personalidades tidas por uns como mitológicas. Mas, de certo modo, o dramaturgo acabou prevendo o clima que estaria por vir.

A peça é a última de uma trilogia de Calderón sobre a história e a política do Chile. Em “Neva”, a primeira da série, bebeu nas contradições da Rússia pré-revolução para fazer um paralelo com a ditadura de Pinochet. “Classe”, ambientada no presente, fala dos traumas do regime militar.

Já “Dezembro” vai a um futuro próximo, quando Peru e Bolívia teriam entrado em guerra. Tudo se passa num Natal em que as gêmeas Trinidad e Paula (Fernanda Fuchs e Ludmila Nascarella) recebem seu irmão mais novo, Jorge (Alan Raffo), recém-chegado do front. Mas o que seria uma festa acaba em conflitos —pessoais e também da região.

É uma escrita seca e contundente, que trata os conflitos latino-americanos com ironia. Numa cena, lembram o que aconteceu num agrupamento no campo. Ali surgiu, de um helicóptero, um Papai Noel com um saco de fuzis. Era, na realidade, um capitão, que acabou atirando e matando civis. “E acabou a festa?”, questiona um personagem, ao que o outro responde: “Não, só se deram conta no outro dia”.

“E ele diz ‘capitão’. Podem achar que foi de propósito [uma referência ao presidente Jair Bolsonaro, capitão reformado do Exército], mas já estava no texto”, conta o diretor.

Na montagem, Fortes põe a plateia ao redor da cena, num palco em formato de arena. A ideia é que o público perceba como os outros espectadores reagem à trama, que desde o início trata da questão do 
estrangeiro e como ele é visto de forma xenófoba.

Algo que ainda surge em “Poses para Dormir”, texto da argentina Lola Arias que Fortes também dirigiu e apresenta no festival. A peça, em sua primeira montagem brasileira, é outra metáfora política, de um estado fascista, mas a autora o faz num estilo que define como ficção científica.

Tudo começa de forma concreta, num cenário realista, mas as situações são levadas ao caos e ao campo do onírico. 

O ambiente traz dois apartamentos vizinhos. Num deles vive o casal Bruno (Fortes) e Nadia (Guenia Lemos), estrangeiros naquela terra de regime autoritário, em que quase não se pode sair de casa e sirenes são ouvidas todos os dias. No outro, estão Jota (Richard Rebelo), escritor de literatura pornográfica, e sua filha adolescente Tao (Giuly Biancato), soldado do sistema.

A questão da língua, como elemento de proximidade e distância, permeia as relações. Os habitantes dali conversam num falar esquisito, permeado por neologismos.

Mas tudo converge para uma tentativa de encontro. Como quando Nadia, agoniada, usa o dicionário para tentar falar com Jota, que a acalma: “Falamos a mesma língua, são só dialetos diferentes”.

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