Grupo paramilitar de MG tinha plano para assassinar João Goulart em 1964
O presidente João Goulart escolheu o dia 21 de abril, dia de Tiradentes, herói da Inconfidência, para o evento na capital de Minas Gerais onde defenderia suas reformas de base. No dia 13 de março, o primeiro Comício das Reformas, na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, reuniu 150 mil pessoas.
Em Belo Horizonte, a expectativa era de que 100 mil fossem à praça da Estação. A propaganda nas ruas era uma nova tática. As propostas, que incluíam reforma agrária e universitária, vinham sendo discutidas desde 1958 e viraram bandeira do governo que assumiu em 1961 provocando desgaste com setores conservadores.
Entre os insatisfeitos estavam os Novos Inconfidentes, grupo paramilitar que tinha traçado três planos para assassinar João Goulart em meio ao ato em Belo Horizonte. Era a ação definitiva contra a “comunização do Brasil”, diziam.
A existência do grupo clandestino só veio à tona publicamente por uma descoberta da professora da UFMG Heloísa Starling enquanto escrevia sua dissertação de mestrado em ciência política. A história foi contada no livro “Os Senhores das Gerais - Os Novos Inconfidentes e o Golpe de 1964” (Ed. Vozes, 1986).
Para garantir que o presidente não sairia vivo do comício, o grupo traçou três linhas de ação. O primeiro plano previa que um avião teco-teco desse voo rasante por cima do palco onde estaria Jango, e largasse dinamites. O segundo, que alguns integrantes jogassem “bombinhas” no meio do público. Enquanto a multidão se dispersava correndo, dois ou três homens abririam caminho com metralhadoras, para chegar até o palco e disparar contra o presidente e quem estivesse com ele
O terceiro previa ter atiradores de escolta posicionados estrategicamente em cima de caminhões e ônibus, ao redor da praça. Entre eles, o coronel José Oswaldo Campos do Amaral, campeão mineiro de tiro.
A história foi relatada pelo general José Lopes Bragança, que dirigiria a ação, à Starling. O golpe precipitado pela marcha do general Olympio Mourão, em 31 de março de 1964, no entanto, derrubou o governo vinte dias antes que Jango chegasse ao estado.
“A ideia dessa conspiração era recuar para Minas Gerais, se [o governo] reagisse, e declarar o estado em estado de rebelião. Os Estados Unidos reconheceriam isso e daqui eles organizariam a resistência até o governo cair. A operação Brother Sam ia desembarcar armas [vindas dos EUA] no Espírito Santo, e a polícia militar mineira montaria um corredor para que elas pudessem chegar”, conta Starling.
Quem eram
Os Novos Inconfidentes eram um intermediário do centro ideológico do poder empresarial de Minas Gerais, o Ipes (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), usado para construir a legitimação da conspiração de 1964, segundo a historiadora.
Heterogêneo, o grupo incluía militares (a maioria já na reserva), oficiais da Polícia Militar, delegados da Polícia Civil, profissionais liberais, estudantes universitários, o setor ruralista do estado e uma ala conservadora da Igreja Católica. Mourão foi isolado das discussões sobre a conspiração.
As reuniões do grupo se tornaram mais frequentes a partir de julho de 1963. No livro, Starling diz que, antes do golpe, ele funcionou como “tropa de choque para reprimir e dissolver forças de esquerda”. Como o grupo permaneceu durante anos obscuro na clandestinidade, é difícil confirmar sua autoria em crimes da época.
O relatório da Comissão da Verdade em Minas Gerais (2017) aponta que os Novos Inconfidentes podem ter sido responsáveis pelo assassinato de João de Carvalho Barros, veterinário, líder comunitário, presidente da Igreja Primitiva dos Apóstolos Pró-Salvação e Cura Divina e filiado do PTB de Jango.
Por volta das 20h45 do dia 2 de abril de 1964, segundo relatos de testemunhas, “entre 20 e 30 homens fortemente armados, vestidos de terno e gravata” entraram em sua casa e o mataram diante da mulher e dos sete filhos. A mulher de Barros e uma filha também foram atingidas. A menina perdeu uma parte do intestino e de um ovário pelos ferimentos.
Segundo a Comissão, sem acesso a documentos oficiais, é difícil estabelecer “uma relação direta entre a morte de João de Carvalho Barros e agentes do Estado”.
“Apesar de não ser possível dizer quem são os responsáveis, é razoável afirmar que ele pode ter sido assassinado por um grupo da extrema direita do qual participavam policiais e civis que ‘caçavam pessoas’ consideradas comunistas e que puderam fazer isto, pois tinham a conivência e a omissão do Estado”, diz o texto.
No dia do golpe, 1º de abril de 1964, ainda de acordo com o relatório, os Novos Inconfidentes invadiram a sede da Ação Católica, grupo mais alinhado às propostas de Jango, e seu fundador, padre Willian Silva, foi indiciado em um inquérito militar (IPM).
“O General Carlos Luís Guedes faz duas operações de prisões em Belo Horizonte. Uma muito grande, logo depois do golpe, que é a Operação Gaiola, e quem vai indicar quem deve ser preso são os Novos Inconfidentes”, lembra Starling.
A frente de mulheres
Se os Novos Inconfidentes eram o lado clandestino do Ipes, eles também tinham outra frente pública: a Liga da Mulher Democrata, a Limde. Mulheres dos integrantes do grupo assumiram a propaganda nas ruas e foram fator importante de influência da opinião pública contra o governo.
“Elas não se colocam como sujeitos da política, mas à sombra do elemento masculino o tempo todo. Não são feministas”, explica Starling.
As ações incluíam desde se ajoelhar na praça Raul Soares, no centro de Belo Horizonte, para rezar o terço e pedir que o Brasil fosse salvo do comunismo, até ameaçar se deitar na pista do aeroporto, caso o governador Magalhães Pinto autorizasse que o estado recebesse o congresso para criação da Cutal (Central Única de Trabalhadores da América Latina).
A ação mais importante, segundo Starling, aconteceu no dia 25 de fevereiro de 1964, o dia em que o deputado Leonel Brizola, ex-governador do Rio Grande do Sul e cunhado do presidente, estaria na capital mineira para defender as reformas de base.
Com sombrinha em uma mão e terço na outra, as mulheres da Limde fecharam o local e impediram que Brizola entrasse para falar. A saída foi improvisar um discurso rápido na porta do prédio.
“Na cabeça delas, elas estavam expulsando Lúcifer e sua corte, porque Brizola foi quem dirigiu a campanha da Legalidade [que permitiu a posse de Jango em 1961]”, conta Starling.
As mulheres democratas de Minas ainda trabalharam ativamente para eliminar o método Paulo Freire e exigir a demissão de professores comunistas na UFMG e nas escolas. E queriam que o hino nacional e aulas de moral e cívica entrassem nos currículos.
Depois do golpe, de promoveram a marcha da vitória na capital mineira e um banquete com cardápio “democrata”, elas ainda conseguiram juntar cinco mil assinaturas e convencer o primeiro presidente militar, General Humberto Castelo Branco, a vetar a homologação da profissão de sociólogo, em 1966 - só reconhecida por lei no país, em 1984.
“O mais surpreendente não é a Limde fazer isso, mas que Castelo Branco acata”, diz Heloísa Starling. “O efeito disso junto à opinião pública, na época, deve ter sido tão ou mais forte que as redes sociais hoje”.