Furacão Kathrine

A cena correu o mundo. Antes de falar especificamente dela, porém, é recomendável relembrar o contexto. Os Estados Unidos ardiam em brasas nos anos 60. Guerra do Vietnã, luta pelos direitos civis, uma discussão intensa sobre liberdades. Negros querendo ser, simplesmente, gente. Mulheres exigindo as mesmas oportunidades dos homens. Em meio a tudo isso, a maratona de Boston seguia acontecendo normalmente… apenas com homens. A maratona mais tradicional do mundo começou em 1897 e em 1967, na sua 70º edição, seria disputada… apenas por homens.

O regulamento não era específico, não falava sobre o sexo dos atletas. Mas todos entendiam os códigos não escritos. Maratona era coisa de macho. Mulheres não eram capazes de correr 42 quilômetros. Sexo frágil, sexo débil. Os conceitos de então. E se uma mulher tentasse a inscrição ela receberia uma resposta óbvia: lamento, lady, mulheres não são admitidas em Boston.

Isso até uma jovenzinha de 20 anos, que estudava e treinava em Syracuse (no estado de Nova York) se encantar com as histórias de seu treinador de atletismo Arnie Briggs. Kathrine Virginia Switzer encasquetou que queria correr Boston. Não aceitou as ponderações de seu treinador alertando que Boston não aceitaria. E, influenciada também pelos ídolos da literatura que se apresentavam pelas iniciais (J.D. Salinger, T.S. Eliot), se inscreveu “sem gênero” como K.V. Switzer.

Para encurtar a história, Kathrine foi “encontrada” no quilômetro 3 pelo diretor da prova. O valentão Jock Semple desceu do ônibus de jornalistas e tentou retirá-la da prova arrancando o número de peito 261. O namorado de Kathrine deu um encontrão no diretor de prova e eles seguiram na prova. Os jornalistas fotografaram a cena. Katrhrine, mesmo assustada, completou a prova em 4h20min. A foto do empurrão correu o mundo. Uma mulher havia desafiado o sistema. O feito de Kathrine abriu uma discussão sobre direitos femininos no esporte. Boston precisou se render e permitiu a participação de mulheres a partir de 1972.

Ouvi pela primeira vez essa história em 2012, quase por acaso. Não conhecia a palestrante, e fiquei encantado por ela, e por Boston. Decidi que tentaria correr a maratona de Boston. Por casualidade, consegui o índice (é necessário ter corrido uma maratona anterior em tempos específicos para cada faixa etária) para a edição de 2017. Justamente a que comemorava 50 anos de tudo. E a mesma prova que teria uma sorridente senhora de 70 anos largando com o número 261 no peito. Kathrine não só largou como terminou sorrindo em 4h44min.

A história de Boston e a minha história para chegar a Boston viraram livro. “Boston, a mais longa das maratonas” tem 17 capítulos, mas o 5º é o que mais me toca. O “Furacão Kathrine”, de uma certa forma, resume tudo. Pioneirismo, perseverança, emoção, está tudo lá. Tenho poucos ídolos na vida, mas K.V. Switzer é certamente um deles.

Por isso, recebi algo apreensivo o convite para um evento com ela em São Paulo. Sua patrocinadora Adidas reuniu uns poucos para ouvi-la e depois trotar no Parque do Ibirapuera. Presenteá-la com um exemplar e pedir um autógrafo no meu livro era o mínimo a fazer. Mas ela fez mais. Com um sorriso gigante, pediu que eu traduzisse palavras, me abraçou, me fez gaguejar. E, pela primeira vez, me dei conta do seu grande feito.

Achava que a façanha de Kathrine havia sido desafiar o sistema e bagunçar a praia masculina. Não, esse foi só o ponto de partida. Ela teve a “sorte” de ser agredida por um homem e a cena ter sido fotografada por muitos. A história poderia acabar por aí. Só que Kathrine mudou seus próprios planos. Queria ser jornalista, decidiu que seria uma transformadora. Entendeu que a corrida transforma.

Nos 50 anos seguintes, se dedicou a sorrir, abraçar e, eventualmente, fazer os outros gaguejarem. Primeiro, como atleta, venceu a Maratona de Nova York. Após atazanar a organização de Boston para a inclusão de mulheres, atacou em outras frentes. A pressão bateu no Comitê Olímpico Internacional que, a partir de 1976, incluiu a maratona feminina nas Olimpíadas. Kathrine não parou, jamais. Pegou a corrida como instrumento para o empoderamento feminino, criou sua ONG, passou a organizar provas para mulheres, corre o mundo fazendo isso desde então. Não se cansa de contar a sua história. Sabe que, no final, deixa os cérebros alheios piscando. “Rapaz, é possível, se ela conseguiu, também consigo”. E faz tudo sempre sorrindo.

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