Filhos são piores que a encomenda
Minha filha tinha três anos quando eu lhe disse que estava grávida de sua irmãzinha. Após alguma hesitação e com grande despeito, ela rebateu: “Meu pai também vai me dar um bebê”. Eis aí um bom exemplo doméstico de como e quando começam a se esboçar nossos planos de ter filhos. Por amor aos pais, mas também para tomar seu lugar, nos fazemos essa promessa. Bonecas, animais domésticos e os próprios irmãos podem servir de cobaias, enquanto a prole não vem.
Ter filhos é algo que nem sempre se deseja de fato, embora a ideia de tê-los seja uma fantasia inconsciente perene. Ao longo da vida, essa fantasia pode ser transformada em coisas mais adequadas para nós e não é à toa que chamamos nossas realizações mais importantes de “filhos que colocamos no mundo”. Quando na vida adulta, resolvemos ter uma descendência de carne e osso, o sonho que a impulsiona é tão fantasioso e primitivo quanto o de minha filha aos três: bebês maravilhosos que receberemos dos próprios deuses. A criança maravilhosa é uma combinação de tudo de bom que queríamos ter sido para os pais, com a grandiosidade que imaginamos ter sido de fato. Ou seja, “crème
de la crème” de si mesmo!
Embora seja de uma fantasia onipotente que se nutre nosso amor pelos filhos —fantasia inconfessa e mal disfarçada até para nós mesmos—, não há porque envergonhar-se desse fato. Basta reconhecer que o amor de nossos pais por nós bebe da mesma fonte narcisista. Com o tempo eles se acostumam com a gente, nós nos acostumamos com eles e um amor mais honesto pode até surgir.
E eis que os filhos nascem em sua previsível falibilidade, caindo bem longe da árvore frondosa que imaginávamos ser e bem mais perto do arbusto rasteiro que de fato somos. “Longe da Árvore”, por sinal, é o nome do livro de Andrew Solomon que fala desse desencontro. Se nosso narcisismo não ficar ferido de morte, o luto tem chance de nos levar a uma relação satisfatória com os filhos e, de quebra, à oportunidade de rever nossas ambições megalomaníacas para nós mesmos. O pior que podemos fazer é forçar a barra para que os filhos deem conta do bebê que havíamos encomendado em nossos sonhos.
Sílvia Calderoni, na peça “MDLSX” apresentada na Mostra Internacional de Teatro 2019, encena inesquecivelmente essa problemática. A peça é baseada em trechos do livro “Middlesex” (Jeffrey Eugenides, 2003) e na autobiografia da atriz. Sílvia revela como sua figura andrógina obrigou a família a lidar com o desafio de ter um membro diferente das convenções de gênero. Calliope, personagem do livro de Eugenides, vai um pouco além. Tendo sido criada como menina desde o nascimento, descobre na adolescência caracteres masculinos e passa a ser considerada uma aberração médica. Foge de casa ao descobrir que pretendem operá-la com o intuito de que possa parecer mulher e casar-se algum dia, mesmo que isso lhe custe a perda de parte do corpo e do prazer sexual. Exemplo radical do desmantelamento do sonho dos pais, mas também dos imperativos sexuais de nossa época. Casos de mutilação genital que sofrem algumas crianças que não se encaixam na paleta azul/rosa da cultura são controversos e nem sempre esses sujeitos são reconhecidos em seu possível desejo de bancar a diferença. Mas não precisamos ir tão longe, pois todos nós, em maior ou menor grau, permanente ou circunstancialmente, somos fonte de decepção para nossos pais. Eles também o são para nós. Moral da história: aceita que dói menos. Muito menos.