Estátua escondida em parque da Espanha mostra que não adianta perseguir ideias

Vou contar, em seguida, uma história que talvez sirva de bálsamo para o desespero com o festival de estupidez que assola o país, demonstrado nas colunas desta sexta-feira (3) de Reinaldo Azevedo e Vinicius Torres Freire. Cito apenas os dois por serem os mais recentes desesperados. Se fosse mencionar todos, não sobraria espaço para mais nada.

A história que vou contar foi exumada, em artigo para El País, por Pedro Sánchez, presidente em funções do governo espanhol e ganhador da eleição geral de domingo (28). Demonstra que é impossível enterrar ideias e ideais, quando umas e outros têm sólidas raízes.

A história é a seguinte: na entrada de acesso à sede do Partido Socialista Operário Espanhol, há um busto de grandes proporções, o do fundador do partido, Pablo Iglesias Posse.

A peça ficou enterrada, em algum recanto do Parque do Retiro (o Ibirapuera de Madri) durante os quase 40 anos que durou a ditadura do generalíssimo Francisco Franco Bahamonde, dito “caudillo de España por la gracia de Dios” (uma das razões pelos quais detesto que Deus seja invocado por políticos de qualquer signo ideológico).

Os militantes socialistas que esconderam a estátua temiam que a ditadura a destruiria. Só foi recuperada quando a democracia foi igualmente recuperada, em 1977, dois anos depois da morte de Franco.

Assim como o busto de Iglesias, os ideais do grupo que fundou tampouco foram destruídos.

Moral da história, ao menos do meu ponto de vista: enterrar estátuas, assim como ideais, não acaba com eles nem com elas.

A ditadura franquista bem que tentou. Há um livro clássico sobre a Guerra Civil espanhola do período 1936/39 cujo título diz tudo: “Metade da Espanha morreu", do jornalista Herbert Matthews.

A metade que morreu - ou, mais precisamente, foi erradicada da vida pública em todas as suas instâncias - foi a esquerda (socialistas, comunistas, anarquistas).

A democracia desenterrou não só o busto de Iglesias mas o partido que ele fundara. O PSOE se reciclou: abandonou o marxismo em 1979. Transformou-se em um partido social democrata como muitos dos que, à época, comandavam boa parte dos países europeus.

O partido acabou sendo decisivo, já no governo, para que a Espanha aderisse em 1986 à então Comunidade Econômica Europeia, hoje União Europeia.

Participar do projeto europeu foi essencial para o enorme salto que a Espanha deu, tanto na economia como na política e, acima de tudo, na estabilidade institucional. Para um país que sangrou em uma guerra civil, não é trivial manter um sólido sistema democrático já faz 42 anos, passando, no período, por um brutal atentado terrorista, por uma crise econômica sem paralelo nos últimos 100 anos, pela ascensão de um forte movimento separatista na sua região mais rica, a Catalunha, e por um período de questionamento da democracia, a bela ideia que desenterrou o busto de Pablo Iglesias e o partido que ele fundou.

Ideias, acho eu, não podem ser assassinadas (ou enterradas). Podem, sim, morrer de morte natural, ou por inadequação ou por esclerosamento ou por surgirem alternativas mais sedutoras.

Mais cedo do que tarde, a força das ideias, quando ela existe de fato, suplanta a força da estupidez.

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