Estética é parte do gosto da comida

Harold McGee esteve aqui há alguns anos, depois de ter escrito seu livro. Acho que veio lançá-lo traduzido no Brasil. Me lembro dele, talvez no Paladar, vendo um peixe monstruosamente enorme ser conduzido para a sala de conferências, num anúncio vivo de óleo de fígado de bacalhau. Nós, brasileiros, atordoados com um peixe tão grande que nunca tínhamos visto, e ele fazendo cara de normal como manda a boa educação em Roma.

Foi programado para uma última conferência, quando todos se preparavam para ir embora. Havia só uns gatos pingados na sala, que não tinham ideia de quem era ele, que dali sairiam todas aquelas máquinas improváveis que não cabiam nas nossas cozinhas. Ficou por ali uns dez minutos, pediu licença e foi embora. Não falava português, e os alunos não sabiam inglês.

Demorou bastante para que nós cozinheiros assimilássemos as ideias científicas que ele expunha e que, talvez feitas por um cientista, soassem abstrusas demais. Pouco antes andara por aqui o cozinheiro do Mugaritz, e fizera também uma palestra que me soou como uma aula de física e química do colégio e me assustou um pouco. Não era, decididamente, a minha praia.

Hoje, de repente, nos entendemos. Não há livro novo que não fale das propriedades físicas e químicas do cozinhar, virou carne de vaca, tomamos coragem para tantas coisas!

Um dos primeiros a aceitar a cozinha científica intuitivamente foi o Heston Blumenthal, inglês, autodidata que fez um enorme sucesso no seu restaurante, o Fat Duck, assoprando cheiros no nariz do Rogério Fasano e querendo que ele pusesse fones de ouvido para comer peixe escutando as ondas do mar.

Como bom descendente de italianos, o Rogério não se conformou: queria sossego e paz para comer sua massa. Outros gostavam.

Não era uma novidade de verdade. Marinetti, na sua revolução modernista, já passara à frente do Ferran Adriá e incitava todos a mexerem com todos os sentidos enquanto comiam, passando a mão por veludo, aspirando cheiros diferentes, preparando esteticamente os pratos, esvaziando-os da pasta asciutta que amolecia o caráter italiano.

Hoje, todos sabemos tudo, reparem nos reality shows de comida: tanto os cozinheiros como o júri se preocupam com equilíbrio dos sabores, usam as máquinas pensadas para triturar, arrancar o cerne, o sabor de suas tradições.

Uma única gota de azeite bem utilizada interpreta uma infância, lembra toda uma região. Preocupamo-nos com o umami, não nos esquecemos do toque cítrico (do mesmo modo que uma cozinheira antiga, cutucada pelos deuses, incluía uma laranja na feijoada).

A verdadeira revolução está na estética. Ninguém mais tem coragem de apresentar um PF amontoado, a não ser para se mostrar ogro, diferente. Aprendemos, e bem, que o olhar faz parte do gosto.

Passamos por uma grande mudança quase sem sentir. O que mais nos espera? Está próximo o novo remelexo ou devemos curtir essa com prazer e sabedoria, sem excessos, até dar lugar à outra, esperta, que nos olha lá da esquina?

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