Espírito de liberdade toma conta do Sudão após deposição de ditador

A minivan avançou pela margem do rio Nilo, abrindo caminho no trânsito do fim da tarde. A noiva estava no banco da frente, de vestido rosa, segurando no colo uma bolsa com paetês e com os pés envoltos em ataduras.

Samar Alnour, a noiva, recebeu dois tiros no mês passado durante o levante turbulento que depôs o ditador de longa data do Sudão, Omar Hassan al-Bashir. Agora ela estava voltando ao local dos protestos para se casar com o homem que a salvara.

O operário da construção civil Muntassir Altigani, 30 anos, correra para socorrer Alnour quando ela estava deitada na rua, sangrando. Balas passavam zunindo em volta deles. Como Almour, Altigani aderira à revolta contra o desgoverno de Bashir. Nas semanas seguintes os dois se apaixonaram.

“Eu a achei muito corajosa”, disse Altigani.

Mas a revolução ainda não terminou.

A minivan estacionou ao lado do local dos protestos, onde milhares de pessoas ainda estão acampadas diante do QG militar sudanês, reivindicando a transição para um governo civil. Alnour, que tem 28 anos, é universitária formada e está desempregada, ajeitou o vestido para se acomodar numa cadeira de rodas e juntar-se aos manifestantes.

Um tio a empurrou para o meio da multidão, passando pelos cafés montados de improviso, com soldados de folga e casais flertando; por oradores e poetas de rua declamando seus sonhos para o país, por um músico com os cabelos em tranças dread, tocando covers de canções de Bob Marley.

Seguida por uma multidão que a aplaudia, Alnour parou no local exato onde tinha sido baleada.

Ela disse que por toda a vida conhecera apenas o Sudão de Bashir: um país sem alegria, onde a corrupção frustrara seus esforços para conseguir um emprego no setor público. Agora um novo país se delineava diante deles, ou pelo menos a promessa de um novo país.

“Antes, a gente não festejava”, disse Alnour. “As pessoas não podiam se expressar, não podiam falar abertamente. Hoje nos sentimos livres.”

O Sudão revolucionário virou palco de cenas extraordinárias. Após décadas de um governo árido e sufocante, uma onda de exuberância varre a capital, Cartum, onde jovens sudaneses estão se deleitando com a nova liberdade —livres para falar de política, para fazer festa e até para buscar o amor.

O epicentro dessas transformações é a área de protestos nos portões do quartel-general militar. Mulheres de jeans se deslocam sem medo de ser assediadas pela odiada polícia da ordem pública, cujas patrulhas sumiram das ruas. Casais andam tranquilamente na rua, alguns de mãos dadas.

Dia e noite, garotos adolescentes batem pedras contra as laterais de uma ponte ferroviária num ritmo constante que virou de certo modo o som dos batimentos cardíacos da revolução.

Nas margens do Nilo, jovens descansam em cadeiras de plástico sobre a grama, fumando os narguilés que Bashir proibira.

Ao lado da água, homens tomam goles de garrafas de “araqi”, um vinho de tâmaras cujo consumo pode ser castigado com 40 açoitadas sob a lei da sharia sudanesa.

O odor doce de haxixe paira no ar. Entre os presentes estão soldados uniformizados que juraram proteger os revolucionários.

Devido à lei islâmica imposta por Bashir, o Sudão, uma sociedade já conservadora, estava desacostumado com cenas desse tipo. Ainda é possível que ocorra uma reação. Mas as transformações estão se fazendo sentir em outros lugares, muito além da área dos protestos.

Uma moça usando jeans justos andou de carona numa moto na zona sul de Cartum uma noite, com os cabelos esvoaçando soltos. É algo que antes teria sido impensável e que provavelmente a teria levado a ser presa. Agora, homens que passavam ao lado em um carro buzinaram e fizeram sinais de positivo com os polegares. A mulher sorriu e fez o sinal de vitória.

“As mudanças foram chocantes inicialmente”, comentou Zuhayra Mohamed, 28, gerente de projetos que desafiou seus pais para participar dos protestos. “É como se o regime tivesse apertado nosso pescoço por tanto tempo. Agora surgiu algo que é muito lindo.”

Mas o velho Sudão ainda não desapareceu, mesmo que não esteja visível.

Numa manhã recente, dezenas de policiais de ordem pública uniformizados tomavam chá à sombra de árvores diante de seu QG em Cartum, perto da confluência do Nilo Azul e do Nilo Branco. Estavam aguardando ordens, disse um comandante.

Na semana passada, enquanto os manifestantes festejavam, Amer Yousif estava sendo açoitado.

O motorista de 35 anos saíra para comprar cigarros e fora flagrado com uma garrafa de araqi no bolso. Na manhã seguinte um juiz o sentenciou a 50 açoitadas, incluindo dez a mais pelas circunstâncias agravadas.

O juiz “parecia enfurecido com a revolução”, disse Yousif, levantando a camiseta para mostrar um vergão em suas costas.

Outro casal jovem, Mohamed Hamed e Nahed Elgizouli, também se conheceu durante os protestos. Mas não foram balas que aproximaram os dois, e sim uma nuvem de gás lacrimogêneo.

Hamed, engenheiro de 31 anos, desabou de joelhos no centro de Cartum, com os pulmões cheios de gás. Elgizouli, 26, correu até ele e lavou seu rosto com Coca-Cola.

Nos meses seguintes eles se conheceram melhor, participando de protestos, fugindo de capangas armados do regime e protestando contra a morte de um amigo mútuo detido.

“Espancaram nosso amigo até a morte”, disse Elgizouli, que trabalha para uma organização que promove a saúde reprodutiva.

Os dois já tinham se desentendido com a temida polícia da ordem pública antes mesmo da revolução. Elgizouli foi detida no ano passado quando retornava com amigos homens de um passeio no deserto. Hamed foi punido com 40 açoitadas em 2016 por estar embriagado.

Não foi tão grave assim, ele disse, explicando que havia subornado o açoitador para que não batesse com força.

O colapso econômico não os afetou tanto quanto aos sudaneses mais pobres, mas eles odiavam o modo como o governo de Bashir lhes roubava oportunidades e os lembrava constantemente do humilhante isolamento de seu país.

No Sudão, sanções americanas significam que Netflix, Spotify e muitos outros serviços na internet são bloqueados, cartões de crédito não funcionam e franquias internacionais não estão presentes no país. Um café popular em Cartum é chamado Starbox e ostenta uma versão do logotipo preto e verde do Starbucks.

Elgizouli e Hamed viam seus amigos deixando o país para ter vida melhor no exterior.

“O Sudão era como um inferno”, disse Elgizouli. “Sem esperança, sem liberdade, sem piadas.”

A amizade dos dois virou namoro durante a investida final contra Bashir, no início de abril. Eles se deitaram juntos no chão enquanto tiros explodiam diante do complexo militar. Festejaram juntos quando o ditador caiu.

Agora eles andam no meio da multidão de mãos dadas, livremente. “Este é o novo Sudão, o país com que sonhamos”, falou Elgizouli.

As diferenções religiosas e étnicas que Bashir explorou para reforçar sua autoridade estão sendo apagadas ou perdendo importância. Na semana passada um trem chegou de Atbara, 180 quilômetros ao norte, cheio de revolucionários que festejavam a nova realidade. Na terça-feira chegou uma cavalgada vinda do distante Darfur.

“As pessoas estão se sentindo mais em paz umas com as outras”, comentou Mohamed, o engenheiro. “Há um clima de união.”

As novas liberdades são frágeis; não é certo que vão perdurar. As negociações sobre partilha do poder entre líderes dos protestos e os militares estão em sua quarta semana e ficaram tensas nos últimos dias. Fora da bolha dos protestos, defensores do velho regime aguardam e observam.

Alguns dizem que a luta apenas começou. “É como se estivéssemos num lugar escuro e vislumbrássemos uma luzinha”, disse Elgizouli. “Temos um longo caminho para a liberdade.”

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