Em 'Correr', Drauzio Varella revela por que decidiu espantar o sedentarismo; leia trecho

14/07/2018 - 17h33

Drauzio Varella oncologista, voluntrio numa priso, pesquisador do uso medicinal de espcies amaznicas e celebridade na TV. Ainda assim, ele consegue conciliar h mais de 20 anos o cotidiano atribulado com a prtica regular de exerccio fsico.

Para ele, correr no s um hobby: o combustvel para enfrentar os desafios da vida.

Em "Correr", ele conta por que decidiu espantar o sedentarismo, relata o desafio da primeira maratona, apresenta um panorama da histria das corridas desde sua suposta origem na Grcia antiga e oferece informaes mdicas sobre a prtica.

"Por que tanta gente reconhece que a atividade fsica essencial para a sade mas no consegue abandonar a vida sedentria? Por uma razo simples: praticar exerccios vai contra a natureza humana. Nosso ideal o almoo do domingo, em que comemos at mais no poder e levantamos da mesa para chafurdar no sof (os mais descarados, na cama). Assim agimos porque animal nenhum desperdia energia. Algum j viu uma ona dando um pique no zoolgico ou uma girafa correndo depois do almoo para perder a barriga?", questiona.

Abaixo, leia um trecho do livro.

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Uma tarde na cidade

Homem que homem veste terno e vai para a cidade, aprendi quando pequeno. No que me houvessem ensinado, mas no bairro operrio de So Paulo em que morvamos existia uma barreira bem definida entre as crianas no futebol da calada, os adolescentes com macaco de trabalho e marmita a caminho das fbricas e os homens de palet e gravata que iam ao Centro para pagar a luz, a gua, o telefone, os impostos ou depositar o salrio no banco.

Em minha imaginao, a vida adulta tambm me encontraria na cidade, de terno cinza, gravata escura, culos e capa de chuva, acessrios que considerava essenciais para a elegncia masculina.

Passados tantos anos, ainda conservo o fascnio pelo Centro antigo, regio que a maioria dos mais jovens desconhece. A familiaridade com os nomes e o traado das ruas, a arquitetura da primeira metade do sculo XX, a imponncia das portas dos prdios, as fachadas art dco e a multido de transeuntes evocam imagens e sensaes da poca em que eu andava por l, agarrado mo protetora de meu pai.

Num ms de dezembro, 22 anos atrs, enquanto a paisagem do Centro antigo me trazia memrias da infncia, um tipo grandalho que vinha em sentido contrrio nas proximidades do largo So Bento segurou meu brao, sorriu e fez a pergunta que deveria ser proibida por lei federal: "Lembra de mim?". Tentativas malogradas para localizar personagens como aquele, esquecidos em algum escaninho, s lhes ressaltam o prazer de atormentar suas vtimas.

Por sorte, aps alguns segundos de constrangimento que meu algoz saboreou com sadismo risonho, reconheci em seu rosto uma expresso longinquamente familiar. Arrisquei o nome e o sobrenome de um colega de turma do antigo ginsio, no Liceu Pasteur. Ele abriu um sorriso e anuiu com a cabea, como se o feito de lembrar de um homem com quarenta quilos a mais, sem cabelo, com quem eu perdera contato havia 35 anos fosse mera obrigao.

A conversa foi um monlogo arrastado em que ele falou sobretudo do passado, dos filhos e contou as gracinhas dos cinco netos, a alegria de sua vida de funcionrio pblico aposentado aos 52 anos. Aguardei mudo a primeira chance para fugir daquele astral deprimente. Quando consegui, ele quis saber minha idade, curiosidade nica a meu respeito. Respondi que estava com 49 e apertei sua mo em despedida. Sem largar dela, meu ex-colega do Liceu adquiriu ar solene: "Ano que vem, cinquenta, idade em que tem incio a decadncia do homem".

Retomei o caminho, com a histria da decadncia na cabea. Atolado em trabalho, cheio de ideias e desejos para realizar, eu vivia numa efervescncia intelectual oposta do amigo aposentado. No sentia no corpo o peso da idade; ao contrrio, estava sem fumar havia treze anos, abstinncia que me devolvera o flego e a ateno aos reclamos do corpo. Tinha at comeado a correr num ou noutro fim de semana, prtica ocasional que todos consideravam desaconselhvel.

Quando cheguei ao largo, o carrilho da igreja de So Bento anunciou a hora, melodia que trouxe lembrana as missas fnebres de parentes e amigos de meus avs, s quais eu assistia fascinado pela esttica da liturgia e pela harmonia sonora do latim: "Dominus vobiscum et cum spiritu tuo", o clice de prata que o padre levantava, o dourado do manto, a vibrao do sino do coroinha, a pose constrita dos fiis ao voltar para seus lugares depois de receber a hstia, meus joelhos magros no flagelo do genuflexrio de madeira, a choradeira das mulheres de vu e as lgrimas que cintilavam no rosto dos homens com fitas pretas costuradas na lapela do palet. ramos expostos mais cedo ao mistrio da morte, naquele tempo.

Ao som dos sinos, nasceu a ideia de me propor um desafio para provar que a decadncia no comearia aos cinquenta, no meu caso. Decidi correr a Maratona de Nova York, em novembro do ano seguinte. Quem consegue correr 42 quilmetros deve ser capaz de enfrentar o futuro com mais otimismo e sabedoria, pensei. Escolhi Nova York porque foi na pista em torno do Reservatrio do Central Park que corri pela primeira vez, no incio da dcada de 1980, em companhia do querido e inesquecvel Lus Nasr, pintor talentoso, que nos privaria do convvio com seu humor e inteligncia brilhante trinta anos mais tarde.

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CORRER
AUTOR Drauzio Varella
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 24,90 (preo promocional *)

* Ateno: Preo vlido por tempo limitado ou enquanto durarem os estoques.

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