Dom Quixote ensina a lutar contra injustiças e preconceitos, diz Tostão
Foi na adolescência que escutei falar pela primeira vez de "Dom Quixote", escrito por Miguel de Cervantes no século 17 e considerado o primeiro romance moderno.
Eu era um jovem sonhador, romântico, que queria mudar o mundo. E fiquei bastante impressionado com o cavaleiro da triste figura, o herói louco, paranoico, que lutava contra as injustiças, delirava e via em tudo um inimigo imaginário.
Aos 16 anos, eu já era titular da equipe principal do Cruzeiro e levei os dois volumes do livro para ler na concentração.
Os companheiros me achavam esquisito por gostar de ficar lendo no quarto enquanto os outros se divertiam na sinuca, no totó, nos jogos de baralho e nas brincadeiras. Mas isso não me tornava um recluso: me dava bem com todos e me enturmava; havia tempo para tudo.
Achei o romance confuso, estranho, bastante diferente de tudo o que conhecia. Não sabia se era um livro de humor, uma coletânea de contos, uma obra para crianças ou para adultos, um tratado de psicologia ou de filosofia. Com o tempo, percebi que era tudo isso.
Parei de jogar aos 26, em 1973, por causa de problemas no olho e, dois anos depois, entrei na faculdade de medicina, tornando-me médico em 1981. Nessa época, li novamente o livro e fiquei fascinado.
Interessavam-me muito os conflitos emocionais das pessoas e tinha enorme curiosidade quanto às fronteiras entre realidade e ficção. Durante meu trabalho como médico, estudei psicossomática e psicanálise. Quase troquei a medicina pela psicanálise.
Numa das poucas aulas de psiquiatria que tive, o professor citou Dom Quixote como um exemplo de doente mental, com delírios e visões fora da realidade e outros sintomas típicos de um esquizofrênico.
Na psiquiatria, chamam de "borderline" as pessoas que têm uma estrutura psicológica limítrofe entre a realidade e a ficção, mas que são consideradas normais, pois nunca surtaram, tiveram sintomas delirantes ou visões estranhas em estado de vigília. É interessante que, quando Miguel de Cervantes escreveu o livro, não existia nenhum tratado de psiquiatria.
Os diálogos entre Dom Quixote e Sancho Pança são sensacionais. Um não entendia o outro. Quem era mais lúcido? Há controvérsias.
Dom Quixote foi imaginado como um homem alto, magro, longilíneo, características morfológicas mais comuns nas pessoas esquizofrênicas. Já Sancho Pança, o fiel escudeiro do protagonista, é descrito como um homem baixo, gordo, atarracado, características mais frequentes em pessoas excessivamente operatórias, utilitaristas, apegadas à racionalidade e à realidade.
Anos depois, assisti ao filme "O Homem de la Mancha" (1972), um espetacular musical que revi várias vezes, com Peter O'Toole no papel de Quixote e Sophia Loren como Dulcinéia, seu amor platônico. O protagonista só podia ser O'Toole, com seu talento e tipo físico: alto, magro e longilíneo.
A música, pano de fundo do filme, é magistral. "The Impossible Dream" foi composta por Joe Darion e Mitch Leigh, em 1965, para o musical de mesmo nome da Broadway. Depois a canção foi gravada, em português, por Maria Bethânia.
Em uma determinada cena, Dom Quixote, hospedado em uma pensão junto com Sancho Pança e seu cavalo Rocinante, fica irritado com o desprezo e as brincadeiras sobre seu mundo imaginário. Atormentado, ele canta em voz alta a belíssima canção: "Sonhar mais um sonho impossível, lutar quando é fácil ceder, vencer o inimigo invencível, negar quando a regra é vender...".
Tenho em casa uma coleção de miniaturas de pessoas e personagens que admiro, meus ídolos.
O maior deles é Dom Quixote, o cavaleiro da triste figura, de quem possuo também uma estatueta, com espada e escudo.
Com o passar do tempo, entendi que o personagem é muito mais que um louco sonhador. A obra é um ensinamento sobre como é possível, sem deixar de respeitar as regras e as leis criadas pela civilização, lutar diariamente, nas pequenas e grandes coisas, contra as injustiças, a intolerância, os preconceitos, sem abdicar e sem negar a ambiguidade, as fraquezas, as ambições, os desejos e os delírios do ser humano.
Tostão, colunista da Folha, médico e ex-jogador de futebol, participou da conquista da Copa de 1970.