Ditaduras, com e sem saudades

Nesta fase de ascensão do que pudicamente se tem chamado de iliberalismo, é reconfortante acompanhar duas notícias recentes neste esquecido canto do mundo que é a América Latina.

Primeira notícia: no Uruguai, o Partido Nacional condenou de imediato e publicamente manifestação de um dirigente local que sugeriu a volta da ditadura.

Felipe Bruno, presidente da Junta Departamental de Tacuarembó, uma espécie de legislativo regional, disse o seguinte: “Talvez devesse voltar a ditadura outra vez, para que os insetos sejam eliminados de uma vez” (insetos, no caso, é uma alusão aos funcionários/políticos que se apropriam de dinheiro público).

No mesmo dia em que foram publicadas as declarações, Beatriz Argimón, presidente da executiva dos “blancos”, como são conhecidos os integrantes do Partido Nacional, ligou para Bruno e exigiu que se retratasse publicamente e de forma urgente, relata o jornal El Observador.

Bruno o fez da maneira mais comum em casos do gênero: disse que as palavras haviam sido tiradas do contexto, mas admitiu que poderiam dar a entender que estava pedindo o regresso da ditadura. “Nada mais longe da realidade”, gritou.

Bruno lembrou que foi preso várias vezes durante a ditadura do período 1973-1985.

É importante lembrar que o Partido Nacional nunca foi parte da esquerda, segmento mais perseguido durante a ditadura. Mas os militares não pouparam nenhuma agrupação política, o que deveria inibir qualquer integrante de qualquer uma delas de sentir saudades.

A reação da cúpula partidária, de todo modo, foi suficientemente saudável para corrigir essa, digamos, amnésia de um quadro seu.

No Chile, a amnésia de Mauricio Rojas foi a causa de sua defenestração como ministro da Cultura do governo de Sebastián Piñera, apenas dias depois de ter assumido a pasta.

Rojas, economista chileno-sueco, questionou a validade do Museu da História e dos Direitos Humanos, aberto em 2010 e que documenta abusos durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).

Em um livro de 2015, Rojas disse que o museu “é uma manipulação da história, o uso de uma versão vergonhosa e incorreta de uma tragédia nacional que tocou diretamente a tantos de nós”.

Rojas, que fez o trânsito da esquerda para a direita, defendeu-se depois que seus comentários reapareceram na mídia e provocaram uma onda de protestos: disse que nunca justificara ou minimizara “as inaceitáveis, sistemáticas e graves violações aos direitos humanos que aconteceram no Chile”.

O arrependimento não adiantou: foi demitido –e por um presidente conservador, a ala política não tocada pela ditadura e que, ao contrário, apoiou-a quase incondicionalmente. Ressalva: Piñera foi um dos raros líderes da direita que tratou de desmarcar-se do pinochetismo.

O que há de reconfortante nesses dois episódios é verificar que nem mesmo a direita –o setor que mais instigou golpes militares na América Latina– está agora disposta a reabilitar ditaduras.

Mas há também um lado incômodo: no Brasil, ao contrário de Chile e Uruguai, as viúvas e viúvos da ditadura não são contestados quando põem a cabeça para fora e participam de uma campanha eleitoral, o que ocorre pela primeira vez desde a redemocratização. Não aprendemos nada?

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