Crimeia tem campeonato nacional que não leva a lugar nenhum
Isolada em um limbo geopolítico desde que foi anexada pela Rússia a Ucrânia há cinco anos, a península da Crimeia abriga um campeonato de futebol único no mundo.
O torneio, disputado por oito clubes na sua primeira divisão, é reconhecido pela Uefa (a federação europeia de futebol), mas seus resultados não levam a nenhum dos campeonatos continentais.
É uma espécie de campeonato estadual fantasma, fechado em si mesmo.
Mesmo assim, quatro brasileiros já deram as caras por lá desde o começo da pomposamente chamada Premier League da Crimeia, em 2016. “Não é bem a inglesa”, brinca o pioneiro da turma, o meia-atacante Lukas Brambilla, 24.
Ele chegou em agosto de 2017 à Crimeia, e não sabia nada sobre o território em disputa até aceitar o convite do empresário russo Nikolai Jedrev, que trabalhou com o ex-zagueiro da seleção de 1982 Oscar no Brasilis Futebol Clube, de Águas de Lindoia.
“Foi quando eu fiz um Google que entendi para onde estava indo. Fiquei um pouco preocupado, mas foi super tranquilo”, diz ele, que viajou acompanhado de um “anjo da guarda”: o filho de Jedrev, Alexander, que também é jogador.
A confusão começou logo após a anexação. Os cerca de 20 clubes da região foram impedidos de permanecer na liga ucraniana, mas a Uefa os proibiu de entrar nos campeonatos russos já que a ONU não reconheceu o referendo que votou pela reunificação com Moscou após o governo pró-Kremlin em Kiev ser derrubado.
A solução intermediária foi criar o campeonato fantasma, que tem o que se chama status especial —seus jogadores são profissionais, mas jogam como se fossem amadores. Gibraltar e Kosovo já passaram por isso, mas hoje estão reconhecidos integralmente.
“Isso facilitou muito para trazer jogadores, pois a burocracia era menor”, afirma Alexander, que além de jogador segue o pai nos negócios.
Ele chegou até a treinar com Lukas para ajudar a integrar o cliente ao Krimpteplitsia Molodijne, time que chegou em segundo lugar na disputa da primeira divisão em 2017.
Baseado numa cidadezinha ao norte da capital regional, Simferopol, o clube é de propriedade de um empresário ucraniano que aceitou as novas regras e ganhou um passaporte russo para si.
“Lá é como o Brasil, os cartolas e os técnicos são todos os mesmos sempre”, diz Alexander, crítico do que chama de “jeitinho ucraniano” na hora de negociar.
Segundo ele, até agora não se sabe o destino do 1 milhão de euros (R$ 4,3 milhões) que a Uefa despejou na liga crimeia de 2017 até agora. A Folha enviou um e-mail sobre isso para a liga local, mas não recebeu resposta.
A anexação impactou o futebol de outras formas. Um dos times mais fortes, o Tavria Simferopol, acabou se dividindo em dois. Migrou com o nome para o outro lado da fronteira, onde nunca voltou à velha forma, enquanto foi fundado o TSK-Tavria para jogar para nada na Crimeia.
Lukas jogou até o começo de 2018 na região. Diz ter marcado “cinco ou sete gols”. Além do estranhamento com a comida, a comunicação era o maior problema, pois só dois jogadores falavam um pouco de inglês. Contava com Alexander.
“Morei no hotel do Centro de Treinamento, que é muito bom e organizado. Viajei para os jogos, conheci também Moscou”, disse. O contato com a realidade local o fez entender melhor o contexto político: “Às vezes dava algum temor.”
O campeonato tem três turnos e ainda comporta segunda divisão e uma incipiente Copa da Crimeia, dando conta de estender-se por toda a temporada europeia. Os estádios lembram mais campos de treinamento. “Nunca estavam cheios”, diz Lukas.
“É muito difícil para jogadores brasileiros conseguirem espaço na Europa. Na Crimeia, outros três atletas foram contratados e jogaram ano passado, mas acabaram indo embora. Começou a haver pressão para limitar a entrada de estrangeiros”, diz Alexander, que não pretende voltar a trabalhar na península.
Os salários lá são melhores que a média regional, a comparação possível (cerca de R$ 2.000, segundo o Serviço Federal de Estatísticas): de R$ 2.600 a até R$ 9.500 no maior time, o Sebastopol FC.
Em 2018, segundo a Confederação Brasileira de Futebol, 735 brasileiros foram jogar no exterior, como Lukas.
O meia-atacante nasceu em Caxias do Sul e atuou nos juvenis do Juventude e do Náutico antes de defender o Guarany Bagé. De lá, foi para a Crimeia.
No ano passado, fez uma breve passagem na segunda divisão finlandesa. “Muito frio, mesmo para o padrão russo”, diz. Agora ele está “quase subindo para a primeirona” na Grécia, com o Apollon Larisas. “Comecei em janeiro e já marquei duas vezes.”
Com o clima mais ameno e longe das incertezas políticas da Crimeia, Lukas diz estar feliz, mas não se arrepende da passagem pela península. “Foi importante para que buscasse meu espaço”, afirma. Qual o destino desejado? “A Premier League. A inglesa, claro”.