Copa para surdocegos tem apagão em telão, drama, gritos e inclusão

Parecia até um experimento inclusivo, mas não era. Quase ninguém viu ou ouviu o primeiro tempo de Brasil e Bélgica na tarde desta sexta-feira (6) no Memorial da Inclusão, na sede da Secretaria Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo, na Barra Funda, zona oeste.

Um problema técnico no telão instalado no local deixou em pé de igualdade cegos, surdos, surdocegos e demais pessoas sem deficiência que estavam no local para acompanhar e vibrar com o jogo.

A secretaria promovia a Copa Inclusiva, que ofereceu intérpretes de Libras (língua brasileira de sinais), guias de sinais (que, com o toque, interpreta as imagens e os sons para quem não vê e nem enxerga) e audiodescrição (que transforma em som detalhes de informações visuais, o que complementa o entendimento da cena por pessoas com deficiência visual).

As transmissões de rádio e de TVs via internet, captadas por telefones celulares, foram a solução encontrada por alguns dos presentes para acompanhar o primeiro tempo, mas a quase maioria dos presentes não viu ou ouviu ao vivo, e também não sofreu, com os dois gols belgas.

“Gerou-se uma ansiedade em todo o mundo não ver nem ouvir o jogo. Sem querer, todos viveram uma experiência inclusiva. Como não tinha a transmissão no local, demorou para se acreditar que o Brasil tinha tomado um gol, ainda mais contra. Não queríamos confiar no que os outros, que viam pelo celular, contavam”, diz Lara Souto Santana, 32, coordenadora de desenvolvimento de programas da secretaria.

O médico Ricardo Guerra, 47, que perdeu a visão há dez anos, acompanhou o primeiro tempo com apoio da transmissão de um celular e com guias de sinais, que iam direcionando suas mãos ao longo de um tabuleiro verde, que simulava um campo de futebol.

As mãos da guia e a do médio faziam uma espécie de baile pelo tabuleiro, acompanhando ataques e defesas.

“Acreditei até o final que o Brasil conseguiria virar, mas não deu. O primeiro tempo não foi bom, não jogamos bem, mas o gol da Bélgica foi uma fatalidade, desestabilizou nosso time. O segundo tempo foi bem melhor, mas não conseguimos.”

Para Ricardo, embora narradores de rádio consigam passar emoção e detalhes que auxiliam pessoas cegas a compreender melhor os contextos de partidas, o guia pelo toque é ainda mais interessante.

“Ajuda demais na compreensão espacial, onde está o atacante, por onde a bola saiu, como foi uma jogada”, diz.

Os guias de sinais e os intérpretes de Libras se revezam com outros profissionais a cada 15 minutos para não comprometer a concentração como para que descansassem.

Renato Rodrigues, 37, é interprete de Libras e, nesta Copa, também foi guia de sinais, auxiliando principalmente surdocegos a ampliarem o entendimento das partidas.

“O detalhe é extremamente importante no processo. Preciso passar para a pessoas que o Neymar colocou a mão na cabeça, que perna ele chutou, a velocidade da bola. A minha emoção, preciso controlar, mas a pessoa acaba captando a tensão com o suor das mãos, com o calor do nosso corpo.”

Renato conta que, com pessoas surdocegas, para uma compreensão ainda maior, é necessário o trabalho de duas pessoas. “Enquanto um vai interpretando nas mãos do surdocego a jogada, o outro vai detalhando, nas costas da pessoa, o número do jogador, como ele reagiu ao fazer ou ao perder um gol.”

No segundo tempo, com o telão funcionando, entrou em campo o audiodescritor, que acompanha a partida —ou qualquer outro evento imagético— de uma cabine e transmite os detalhes por ondas de rádio captadas por um aparelho que fica com o usuário cego ou com baixa visão.

Ele narra o jogo sempre preocupado em fazer para os usuários a orientação espacial dos jogadores em campo, os gestos realizados pela equipe, a agitação do técnico Tite ao lado do gramado, por exemplo, o comportamento da torcida, o movimento da bola. “Não posso repetir a mesma coisa que foi dita pelo som. Tenho de me conter em ser o mais técnico possível e não deixar que minha emoção atrapalhe o entendimento completo de uma jogada. Usa-se termos simples, frases curtas.”

A grande tensão e agitação entre os presentes logo no começo do segundo tempo, em que o Brasil pressionava, mas errava muito na finalização foram elementos que deram a atleta Raquel Amaral, 35, que é surda, ainda mais emoção.

“Assistir um jogo sozinha, em casa, é muito diferente. Embora eu veja o que está acontecendo em campo, a energia das pessoas, a vibração são elementos muito importante para entrar no clima do jogo. Estavam muito otimista para o jogo, mas não deu”, disse Raquel, em Libras, traduzidas pela intérprete Talita Messias, 34.

Além dos gestuais, toques corporais, dezenas de cadeiras de rodas circulando pelo ambiente e equipamentos tecnológicos de apoio

Chamou atenção durante a Copa Inclusiva os gritos de vibração dos torcedores surdos, o que ajuda a quebrar o equívoco de que essas pessoas também são mudas. Quando o goleiro Courtois, da Bélgica, espalmou o tiro forte de Neymar, da intermediária, aos 48 min, os surdos foram os mais ruidosos na lamentação.

“Uma ação como essa [da Copa Inclusiva] nada mais é do que várias tentativas que temos de oferecer novas formas de interação das pessoas com deficiência com as pessoas sem deficiência, de promover o direito ao esporte, à cultura. A Copa mobiliza o mundo todo, a pessoa com deficiência não pode ficar de fora. Esperamos inspirar outros países”, afirma coordenadora Lara.

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