'Conge' ou 'cônjuge': uma questão de registro linguístico

Ontem, abordei aqui a forma como o ministro Sérgio Moro pronuncia a palavra “cônjuge” (“conge”), que a mim (e a muita gente) pareceu, à primeira vista, estranha, dado o grau de escolaridade dele. Tive a impressão de que o conhecimento da palavra e de sua família linguística pudesse contribuir para a escolha da pronúncia regular, partindo do pressuposto de que esta fosse mais conveniente.

É bem provável, no entanto, que isso não se sustente. A supressão da sílaba postônica (posterior à sílaba forte da palavra) é um fenômeno muito antigo, observado já na passagem do latim ao português e ainda fértil. Esse processo, em particular, é um dos tipos de síncope, entendida esta, de modo geral, como a eliminação de um som interno da palavra.

O aluno que chama o professor de “psor”, aqueles que dizem “arve” no lugar de “árvore”, “oclos” no lugar de “óculos”, “padim Ciço” em vez de “padre Cícero”, “xicrinha” em vez de “xicarazinha”, todos estão, à maneira do ex-juiz, engolindo uma sílaba (ou mais) da palavra.

O caso de “xicrinha” é interessante, pois faz supor que, em vez de “xícara”, se diga “xicra”, transformando a proparoxítona em paroxítona. É exatamente o mesmo que ocorre com “abobrinha” (de “abóbora”/ “abobra”), “cosquinha” (de “cócega”/”cosca”) e “chacrinha” (de “chácara”/ “chacra”), esta última, aliás, o apelido do famoso apresentador de TV, o Chacrinha. Nesses diminutivos, todos dicionarizados, o sufixo “-inha” prendeu-se às síncopes xicra, abobra, cosca e chacra, as quais, entretanto, não têm registro, assim como conge. Os diminutivos conseguiram uma espécie de passaporte para o registro culto, tão disseminado é o seu uso, mas o grau normal desses termos continua típico de registros não formais.

O fenômeno não se dá só com as proparoxítonas, como Cícero/ Ciço, Lázaro/ Lazo, pólvora/ polva. Há o caso da síncope do “r”, que ouvimos quando alguém pronuncia “pcisa” no lugar de “precisa”, “compade” (em vez de “compadre”) ou mesmo “pade” (no lugar de “padre”) ou “padinho”/ “padim” (no lugar de “padrinho”), “Vige Maria” (em vez de “Virgem Maria”). “Padim Ciço” exemplifica dois tipos de síncope (a do “r” de padrinho e a da postônica da proparoxítona Cícero).

Como se vê, há muitos exemplos, mais fáceis de encontrar fora do registro culto (pelo menos no português atual). Do ponto de vista da linguística, como sabemos, não existe erro em língua. Geralmente se fala em desvio, tendo como base o padrão culto, adquirido na experiência escolar, acadêmica, na leitura e no desenvolvimento educacional. Nada impede, porém, que a pessoa seja entendida dizendo “arve”, “polva” ou “conge”. É apenas uma questão de registro.

No entanto, nem há como condenar os que esperam de um ex-magistrado e ministro de Estado o emprego da norma-padrão da língua portuguesa, nem há como condenar o próprio ministro por fazer uso de uma variante popular da língua. Qualquer julgamento é provisório e, não raro, influenciado por valores e circunstâncias mais instáveis do que desejaríamos.

 

 

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