Com Olavo em dose dupla, direita ganha nova batalha cultural

Por que para a direita importa tanto filmes como "1964: O Brasil Entre Armas e Livros" e "Milagre"?
Tratam-se de duas pré-estreias da semana que contam com Olavo de Carvalho, este que está para a cinematografia conservadora nacional como o onipresente Ricardo Darín para o cinema argentino.

O escritor predileto da família Bolsonaro já havia protagonizado "Jardim das Aflições" (2017), um bandeirante a abrir caminho para documentaristas direitistas numa cena que —verdade, verdade— costuma atrair nomes mais à esquerda.

Ou costumava. Os conservadores parecem ter se tocado que o soft power é uma arma mais poderosa que tanques e viaturas na rua. Lição que aprenderam com o tempo: afinal, boa parte da direita no Brasil, sobretudo a que hoje aderiu ao bolsonarismo, sempre lamentou ter passado décadas beijando a lona no ringue das ideias.

É a noção de que, se tem uma coisa na qual os esquerdistas são bons, é em ganhar a chamada guerra cultural —um campo de batalha que de um lado teria progressistas e suas lutas identitárias (gênero, raça etc.), de outro, conservadores como guardiões de valores (adjetivados com termos como "ocidentais" e "cristãos") que julgam estar a perigo.

Logo, a eleição do direitista Jair Bolsonaro (PSL) seria uma batalha ganha, sem dúvida. Porém, se ficar por isso mesmo, não mais que uma glória passageira conquistada na base do muque. O que a direita precisaria, agora, é esburacar feito queijo suíço o que vê como hegemonia do inimigo em filmes, músicas, revistas e jornais, livros didáticos, peças de teatro.

Aquela história, por exemplo, de que os vencidos, e não os vencedores, contaram a história quando se trata de abordar o golpe militar de 1964. Só o fato de eu ter escrito "golpe", e não "revolução democrática", como diz uma placa do Clube Militar lembrando do 31 de março de 55 anos atrás, já seria um efeito colateral dessa suposta dominação intelectual.

Produção da Brasil Paralelo, "1964" é a aula de história que essa direita tenta popularizar ao rememorar aquele período. Aberto no YouTube há poucos dias, o documentário já acumula mais de milhões de visualizações. Uma delas veio do presidente, que lhe assistiu no avião, voltando de Israel para o Brasil (momento devidamente registrado e multiplicado nas redes sociais).

O repórter especial Fábio Zanini descreve bem a obra, e também as reações que ela vem gerando, no blog Saída pela Direita. Por aqui me volto a "Milagre", obra que, salvo, bom, um milagre, deve provocar menos alvoroço entre as hordas bolsonaristas.

O projeto, a princípio, tem tudo para servir de gasolina para os incendiários da internet. É dirigido por um dos discípulos de Olavo de Carvalho, o carioca Mauro Ventura, que à Folha definiu sua produção como um navio quebra-gelo conservador numa geleira esquerdista. A obra ganhou até menção nos canais virtuais do filho 03 do presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).

O tema também é pop: o milagre que a ciência tanto rejeita e o cristianismo tanto abraça. Mas a linguagem, nem tanto. É um papo mais cabeça que intercala imagens religiosas e de natureza com três entrevistas: Olavo e os físicos Raphael de Paola e Wolfgang Smith. Spoiler: a visão religiosa, temperada com preceitos filosóficos, triunfa.

O palavrório é mais para iniciados do que iniciantes, salpicado de expressões como "andares ontológicos", "ternário", "anima vs. corpus". Não é exatamente o que espera um bolsonarista afeito ao Olavo das redes sociais, aquele que fala em "cu" e "piroca", que solta pílulas como esta aqui de quinta-feira (4): "Só quem se fode nas revoluções socialistas são os pobres. Os ricos vão para Nova York, Paris ou Londres".

Crítico de cinema da Folha, Inácio Araújo não gostou muito, não. Viu ali "uma espécie de cristianismo indolor e raso como o olavismo", um "terrorismo verbal" que não leva o espectador a parte alguma.
Não vou entrar no mérito se "Milagre" é bom ou não é. Me interessa mais apontar como a direita bolsonarista está, pouco a pouco, avançando no tabuleiro de "War" que são as guerras culturais, e com ajuda de influenciadores como Nando Moura, o youtuber catóico Bernardo Kuster (ambos na pré do filme de Ventura) e o próprio clã Bolsonaro.

E isso inclui lutar em vários fronts, indo muito além de xingar uma penca de petistas, de vociferar contra um suposto marxismo cultural que teria inventado até essa lorota de aquecimento global, de convencer esta e futuras gerações que a versão de que 1964 foi golpe sustentado por mortes e torturas é fake news, fake old news.

Com pretensões mais intelectuais, "Milagre" é um passo a mais na normalização das ideias conservadoras dentro da cena cultural, em geral uma redoma progressista.

Se hoje parecem pregar para convertidos, um país que pôs Bolsonaro na Presidência pode estar mais aberto a ouvir o que eles têm a falar. Melhor já ir se acostumando? Bilheterias e likes dirão.

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