China enfrenta EUA em corrida armamentista da inteligência artificial

No final de março, participei do Fórum de Desenvolvimento da China pela nona vez. A visita estimulou minhas recentes observações sobre a política e a economia chinesas. Mas o que torna o fórum mais valioso são os encontros imprevistos que ele propicia. Desta vez, pude conversar com Kai-Fu Lee, antigo presidente do Google China e agora um dos principais executivos de capital para empreendimentos no setor chinês de tecnologia.

Lee me deu uma cópia de seu novo livro, "AI Superpowers: China, Silicon Valley and the New World Order" [Superpotências da inteligência artificial: China, Vale do Silício e a nova ordem mundial].

Ele tem uma história surpreendente a contar: pela primeira vez desde a revolução industrial, argumenta Lee, a China estará na vanguarda de uma grande transformação econômica, a revolução da inteligência artificial.

Ele começa o livro discorrendo sobre o "momento Sputnik" da China, quando o computador AlphaGo, da Google DeepMind, derrotou Ke Jie, o maior jogador mundial de go, um tradicional jogo de tabuleiro chinês. Isso demonstrou a capacidade da inteligência artificial.

O livro de Lee, no entanto, deixa implícito um novo momento de igual importância, quando os Estados Unidos perceberem que deixaram de ser líderes mundiais na inteligência artificial.

O momento Sputnik original aconteceu quando a União Soviética colocou o primeiro satélite artificial em órbita, em 1957. Isso resultou na corrida espacial da década de 1960, a qual os Estados Unidos venceram. Ao que conduzirá a "corrida" atual?

Lee não afirma que a China liderará em inovações fundamentais nessa área. Mas isso talvez não importe, porque os grandes avanços intelectuais requeridos já ocorreram. O que importa mais é a implementação, não a inovação. E quanto a isso, a China tem muitas vantagens, ele afirma.

Primeiro, o trabalho dos principais pesquisadores de inteligência artificial está disponível facilmente online. A internet, afinal, é um mecanismo superlativo para difundir avanços intelectuais, entre os quais os da inteligência artificial.

Segundo, a economia hipercompetitiva e empresarial da China segue o notório lema de Mark Zuckerberg, o fundador do Facebook: "aja rápido e quebre coisas". Lee descreve o mundo da atividade empresarial implacável e da imitação sem remorso que já permitiu que empresas chinesas derrotassem rivais ocidentais nos mercados de origem deles.

O processo incessante de "tentativa e erro" do modelo de negócios chinês, ele argumenta, serve muito bem para estender os benefícios da inteligência artificial a toda a economia. Esse modelo poderia funcionar muito melhor na introdução de veículos autoguiados do que a abordagem cautelosa e a preocupação com segurança que caracterizam o Ocidente. Os enxames chineses podem ser ineficientes, mas são efetivos. Isso é o que importa.

Terceiro, os densos aglomerados urbanos da China criaram uma imensa demanda por serviços de entrega e outros. "As startups americanas gostam de se concentrar naquilo que sabem: construir plataformas digitais limpas que facilitem a troca de informações", argumenta Lee. Mas as empresas chinesas sujam as mãos no mundo real. Integram o mundo online ao mundo "offline".

Quarto, o atraso da China permitiu que as empresas do país queimassem etapas, em termos de serviços. Assim, a China conseguiu ingressar no universo dos sistemas digitais de pagamentos enquanto as empresas ocidentais continuam a utilizar tecnologia desatualizada.

Quinto, a China oferece escala. Tem mais usuários de internet que os Estados Unidos e a Europa combinados. Se dados são de fato o combustível da revolução da inteligência artificial, a China simplesmente dispõe de mais combustível do que qualquer outro país.

Sexto, o governo da China apoia os empreendedores. Lee menciona um discurso do primeiro-ministro Li Keqiang no Fórum Econômico Mundial de verão em Davos, em 2014, no qual ele apelou por "empreendedorismo em massa e inovação em massa".

Em seu relatório "Deciphering China’s AI Dream" [Decifrando o sonho da inteligência artificial da China], Jeffrey Ding, da Universidade de Oxford, aponta para a estratégia nacional do Conselho de Estado da China para o desenvolvimento da inteligência artificial.

O governo da China tem objetivos ambiciosos, e está disposto a correr riscos para atingi-los. Uma das coisas que a China pode fazer com mais facilidade do que qualquer rival é construir infraestrutura complementar.

Por fim, escreve Lee, o público chinês se preocupa bem menos do que o ocidental quanto à privacidade. Seria possível afirmar que os líderes chineses não veem justificativa para qualquer privacidade individual (exceto a deles).

Assim, em que pé está a suposta "corrida" entre Estados Unidos e China, hoje?

Lee distingue quatro aspectos na inteligência artificial: "a inteligência artificial de internet", que rastreia o que as pessoas fazem online; a "inteligência artificial de negócios", que permite que empresas explorem melhor os dados dos quais dispõem;  a "inteligência artificial de percepção", que vê o mundo ao seu redor; e a "inteligência artificial autônoma", que interage conosco no mundo real.

No momento, ele acredita que a China se equipare aos Estados Unidos na primeira categoria, esteja muito atrás na segunda, um pouco adiante na terceira e, de novo, muito atrás na quarta. Mas dentro de cinco anos, calcula Lee, a China pode estar um pouco adiante na primeira, bem menos atrasada na segunda, bem adiante na terceira e empatada na quarta. E, na opinião dele, não existem outros concorrentes.

Ding analisa de modo diferente os propulsores. Fala em hardware, dados, pesquisa e ecossistema comercial. A China está muito atrás dos Estados Unidos na produção de semicondutores, adiante no número de potenciais usuários, e tem cerca de metade do número de especialistas em inteligência artificial e metade do número de companhias nesse ramo. No cômputo geral, o potencial chinês é equivalente à metade do americano. Mas Ding está considerando a inteligência artificial como um todo, e o foco de Lee são as aplicações comerciais.

A experiência histórica sugere que as oportunidades de criar renda oferecidas por uma vantagem tecnológica são valiosas, embora muitas vezes durem pouco. Assim, determinar que país terá a liderança na aplicação da inteligência artificial é de fato importante. Mas o impacto econômico e social da inteligência artificial é uma questão mais ampla e relevante para todos os países.

Como Lee enfatiza, avanços na inteligência artificial oferecem ganhos. Isso não acontece só em termos de conveniência pessoal, mas na melhora dos diagnósticos médicos, na personalização da educação, na gestão de sistemas de transporte e energia, na criação de uma Justiça mais equânime, e assim por diante.

No entanto, a inteligência artificial também ameaça criar grandes desordenamentos, especialmente nos mercados de trabalho. Muitos dos trabalhos (ou tarefas) que a inteligência artificial pode realizar são realizados hoje por pessoas com boa escolaridade. Parece razoável temer que inteligência artificial acelere o esvaziamento da renda da classe média, e até da classe média alta, e que promova ainda mais concentração de riqueza privada e poder no topo.

Mas talvez a mais importante consequência da transição estará na intensidade da influência e vigilância que dispositivos e sensores móveis de inteligência artificial tornarão possível. O Big Brother de George Orwell (ou muitos big brothers comerciais) poderão estar de olho em nós o tempo todo. Uma monitoração assim perfeita pode ser atraente para o Estado chinês. Mas para mim e, espero, bilhões de outras pessoas, seria horrível.

Lee insiste em que a inteligência artificial não quer dizer uma versão artificial da inteligência humana: um verdadeiro supercérebro ainda demorará muito tempo a surgir. Mesmo assim, os desafios que a modalidade atual de inteligência artificial cria serão imensos. Não a deteremos. Mas um dia talvez cheguemos à conclusão de que criamos um monstro.

Tradução de Paulo Migliacci

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