Chativistas com causa própria

Afrânio, industrial, protesta todos os dias nas redes sociais contra os grandes grupos cervejeiros. Ele é dono de uma pequena cervejaria, mas gostaria de crescer.

Babi, blogueira, alerta suas seguidoras contra os perigos do glúten, da lactose, do sódio e do açúcar. A cada sexta-feira, ela recebe em casa uma cesta com mimos de uma rede de lojas de produtos saudáveis, fitness e funcionais.

Carlos, Dani e Elisa decidiram que os canudos plásticos são o grande mal do mundo. Eles são assessores de meia dúzia de cafés hipsters cujo diferencial é servir as bebidas com um canudo feito de guardanapo.

Fátima teve uma epifania e percebeu que o arroto das ovelhas adiantará em meia hora o Apocalipse. Ela trabalha na organização de eventos do pessoal da gastronomia do bem, sustentável e cruelty-free.

Gertrudes, Horácio, Irene, Jerônimo e Karina veem a alimentação orgânica como a salvação da humanidade. Eles têm uma comunidade agrícola poliamorista, que abastece feirinhas na zona oeste de São Paulo.

Lídia tenta convencer o mundo das virtudes de um vinho de uva isabel, engarrafado por um pequeno produtor biodinâmico de Jundiaí num garrafão de Sangue de Boi. Ela vende o dito vinho a preço de Bordeaux em seu restaurante de culinária plant-based.

Manuela luta pela demarcação geográfica dos queijos da serra dos Botocudos. É lá que sua família possui uma próspera fazenda de gado leiteiro.

Nélio, Otília e Paula têm uma empresa de fomento à produção de comida artesanal e familiar. Contratados por uma multinacional fabricante de chocolate, viraram youtubers.

Quinn, de Oklahoma City, escreveu três livros. Eles descrevem, para o leitor norte-americano, o açaí como um alimento milagroso. Quinn possui uma empresa de exportação em Belém do Pará.

Os irmãos Raul e Saul, churrasqueiros, deixaram a barba crescer e compraram luvas pretas. Para eles, a alimentação carnívora devolve o homem à natureza, de volta ao seu papel primitivo de caçador. Os manos rodam o país em eventos bancados por um frigorífico investigado pela PF na operação Colchão Duro.

Tatiana, Úrsula, Vítor e Wilton, populares no Instagram, são entusiastas da gastronomia paulistana. Eles comem de graça nos restaurantes que anunciam como “dicas”.

Xande, chef de cozinha, prega o uso de produtos de comunidades sustentáveis e integradas à natureza. Ele investe, nessas comunidades, parte da grana de um contrato publicitário com uma margarina feita de soja transgênica da Amazônia.

Yuri é beerfluencer. Contra tudo e contra todos, ele defende a cerveja de milho. Sua geladeira está sempre cheia.

Zé come o pão que o Diabo amassou. Ele é agente funerário.

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Os personagens acima são inspirados em tipos que habitam o universo da gastronomia. Elas não estão fazendo nada de errado –todos temos que pagar contas, e ninguém está a passeio neste mundo. Mas você não precisa levar essa gente a sério: a paixão pela causa sempre esconde a lábia do vendedor.

Levantar bandeiras é necessário se você quer mudar algo que acha errado, mas transparência também é fundamental. Toda paixão alimenta um interesse material, que geralmente é legítimo. Escamotear esse interesse pode levantar suspeitas. E o apego desmesurado à causa vira um desastre quando o chativista se vê obrigado a deixá-la de lado e ser incoerente para honrar os boletos.

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