Celebrar o passado é estupidez

A nostalgia é traiçoeira. Faz-nos ter saudade de um passado, remoto ou recente, completamente deformado pelo viés.

Varrem-se as memórias ruins para baixo do tapete; as boas prevalecem. Não importa se elas não são tão numerosas –nem tão boas– assim. Não importa sequer se essas memórias são reais ou inculcadas.

Épocas difíceis favorecem o resgate dos “tempos dourados”. Tingem-se de ouro até os anos plúmbeos da ditadura. Que fase.

“Ah, no meu tempo é que era bom.” Dói ouvir imbecilidades de tal calibre. Ainda mais quando saem da boca de amigos que atravessaram com você aqueles anos escrotos.

Tudo era pior, inclusive a comida. Isso não impede que o marketing e a publicidade, sempre eles, nos incutam lembranças saudosas da cozinha “de antigamente”, “das nossas avós”. Avó de quem?

Uma velhinha de hoje, 2018, deve ter vivido seu auge culinário lá pelos anos 1980. Época em que a minha mãe, avó de meus filhos, cozinhava para mim.

Dona Anita (com um tê só), minha mãe, era moderna para os padrões medievais do Brasil de então. Trabalhava fora. Muitas mulheres o faziam –mas isso não as eximia da lida doméstica. A indústria alimentícia resolvia a agenda dessas pessoas com misturas mágicas.
Lá em casa, era bolo de caixinha. Pizza com massa de caixinha. Pudim de caixinha. Dá-lhe gelatina de caixinha em cores vibrantes. Cubinhos de caldo de carne e sódio. E muita margarina. Prático, não se pode negar.

Voltemos um tantinho a mais no tempo. Para quando a produção era artesanal, sem os vícios da indústria. Tudo feito na fazenda. Galo cantando pela manhã, vaquinhas no pasto, trabalho de sol a sol.

Pois bem. O artesanal não era uma opção consciente, mas a única via possível em um mundo tosco e desconectado. Na fazenda, a sinhá levava o crédito das receitas enquanto suas mucamas ralavam na cozinha. Não existia geladeira. Carne era charque, e peixe era bacalhau – produtos frescos, nem em sonho.

O leite contaminado matava crianças a rodo –sei disso porque meu pai, de 1927, perdeu dois de cinco irmãos ainda na infância. O botulismo atacava os embutidos; os coliformes fecais infestavam o queijo. O vinho era azedo, o azeite era rançoso.

As pessoas dificilmente passavam dos 40 anos. Morriam jovens, de doença ou de inanição. Quando não há dentes para mastigar a comida, o natural é perecer.

A nostalgia é tóxica. O universo idílico da fantasia dos hipsters bucolistas de Pinheiros nunca existiu. Estamos melhores do que nunca. Mas tudo sempre pode degringolar.

Vamos olhar para a frente, por favor. Isso também vale para as eleições.

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